A situação concreta foi a
seguinte:

Em Novo Gama
(GO), foi editada a Lei Municipal 1.516/2015, proibindo a utilização em escolas
públicas municipais de material didático que contenha “ideologia de gênero”:

Art. 1º Fica proibida a divulgação de
material com referência a ideologia de gênero nas escolas municipais de Novo
Gama-GO.

Art. 2º Todos os materiais didáticos
deverão ser analisados antes de serem distribuídos nas escolas municipais de
Novo Gama-GO.

Art. 3º Não poderão fazer parte do
material didático nas escolas em Novo Gama-GO materiais que fazem menção ou
influenciem ao aluno sobre a ideologia de gênero.

Art. 4º Materiais que foram recebidos
mesmo que por doação com referência a ideologia de gênero deverão ser
substituídos por materiais sem referência a mesma.

Essa lei é constitucional?

NÃO. O STF entendeu que existe
inconstitucionalidade tanto sob o aspecto formal como material.

Inconstitucionalidade
formal: Municípios não possuem competência para legislar sobre conteúdo
programático e outros aspectos pedagógicos

O art. 22,
XXIV, da C/88 estabelece que a União possui competência privativa para fixar as
diretrizes e bases da educação nacional:

Art. 22. Compete privativamente à União
legislar sobre:

(…)

XXIV – diretrizes e bases da educação
nacional;

(…)

Parágrafo único. Lei complementar
poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias
relacionadas neste artigo.

Em
complemento, a Constituição também conferiu primazia à União ao imputar-lhe a
competência para estabelecer normas gerais sobre educação e ensino, reservando
aos Estados e ao Distrito Federal um espaço de competência suplementar:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e
ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(…)

IX – educação,
cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e
inovação;

Art. 30. Compete aos Municípios:

(…)

II – suplementar a legislação federal e
estadual no que couber;

No exercício dessa competência
legislativa, a União editou a Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB).

A LDB não traz qualquer proibição
quanto à divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas
escolas públicas.

A Lei municipal que proíbe determinados
conteúdos nas escolas públicas representa ingerência explícita do Poder
Legislativo municipal no currículo pedagógico ministrado por instituições de
ensino vinculadas ao Sistema Nacional de Educação (art. 214, CF/88 c/c Lei
Federal nº 13.005/2014) e, consequentemente, submetidas à disciplina da Lei
Federal nº 9.394/96 (LDB).

Esse é um assunto que necessita
de tratamento uniforme em todo o país, devendo, portanto, ser tratado pela
União (art. 22, XXIV, da CF/88).

A eventual necessidade de suplementação
da legislação federal, com vistas à regulamentação de interesse local, jamais
justificaria a edição de proibição à conteúdo pedagógico, não correspondente às
diretrizes fixadas na LDB.

Desse
modo, os Municípios não dispõem de competência legislativa para a edição de
normas que tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologias de
ensino ou modos de exercício da atividade docente.

Municípios não possuem competência para editar lei
proibindo a divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas
escolas municipais.

STF. Plenário. ADPF 457, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em
27/04/2020.

Inconstitucionalidade
material

O STF entendeu também que essa
lei municipal é materialmente inconstitucional porque viola dois princípios
relacionados com o ensino:


a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber (art. 206, II, CF/88); e

• o pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas (art. 206, III, CF/88).

Art. 206. O ensino será ministrado com
base nos seguintes princípios:

(…)

II – liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de
ensino;

Censura prévia

A Lei municipal que proíbe a
divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas
municipais configura censura prévia.

A lei pretende proibir
determinados conteúdos que entende supostamente prejudiciais.

Dignidade da pessoa humana

O reconhecimento da identidade de
gênero é constitutivo da dignidade humana. O Estado, para garantir o gozo pleno
dos direitos humanos, não pode vedar aos estudantes o acesso a conhecimento a
respeito de seus direitos de personalidade e de identidade.

Resumindo:

Compete privativamente à União legislar sobre
diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da CF), de modo que os
Municípios não têm competência para editar lei proibindo a divulgação de
material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas municipais. Existe
inconstitucionalidade formal.

Há também inconstitucionalidade material nessa lei.

Lei municipal proibindo essa divulgação viola:

• a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF/88); e

• o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas
(art. 206, III).

Essa lei contraria ainda um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a promoção do bem de
todos sem preconceitos (art. 3º, IV, CF/88).

Por fim, essa lei não cumpre com o dever estatal de
promover políticas de inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção
da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero.

STF. Plenário. ADPF 457, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em
27/04/2020.

“Ideologia de gênero”

Vale ressaltar que a expressão “ideologia
de gênero” não é tecnicamente correta.

O mais adequado é falar em identidade
de gênero.

Identidade de gênero significa a
maneira como alguém se sente e a maneira como deseja ser reconhecida pelas
demais pessoas, independentemente do seu sexo biológico.

“A identidade de gênero se refere
à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero
possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado
no momento de seu nascimento.

Uma pessoa transgênero ou trans
pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa
não-binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero,
dois-espíritos, travesti, fa’afafine, gênero queer, transpinoy, muxe, waria e
meti Identidade de gênero é diferente de orientação sexual. Pessoas trans podem
ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual
e assexual.” (Nota Informativa das Nações Unidas. Disponível em
https://unfe.org/system/unfe-91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf?platform=hootsuite)

Nas palavras do Min. Edson Fachin:

“O reconhecimento da identidade
de gênero é, portanto, constitutivo da dignidade humana. O Estado, para
garantir o gozo pleno dos direitos humanos, não pode vedar aos estudantes o
acesso a conhecimento a respeito de seus direitos de personalidade e de
identidade.”

Artigo Original em Dizer o Direito

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