Emissora de TV pode ser condenada ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em razão da exibição de filme fora do horário recomendado pelo Ministério da Justiça


CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA E
JULGAMENTO DA ADI 2404

Classificação indicativa

O art. 254 do ECA prevê que os programas de rádio e TV, com base
em seu conteúdo, deverão ser classificados como apropriados ou não, de acordo
com a faixa etária.

Ex: um programa de TV que não exiba cenas de violência, sexo
ou uso de drogas é classificado como “livre para todos os públicos”. Se ele
tiver cenas de nudez velada, insinuação sexual, linguagem de conteúdo sexual,
simulações de sexo etc., poderá ser classificado como “recomendado para maiores
de 12 anos”.

O governo estipulou horários em que cada um desses programas
deverá passar de acordo com a faixa etária que ele foi enquadrado. Ex: o
programa livre para todos os públicos poderá ser exibido em qualquer horário;
por outro lado, o programa recomendado para maiores de 12 anos somente podia
ser transmitido a partir de 20h.

Quem faz essa classificação?

O Ministério da Justiça, por meio de um setor específico que
cuida do assunto. Há uma portaria que regulamenta o tema (Portaria 1189/2018-MJ).

Quais os critérios utilizados?

Existe uma espécie de “manual” utilizado pelo MJ para fazer
esta classificação.

Há, em resumo, três critérios de análise: a) violência; b)
sexo e nudez; c) drogas.

A partir daí, o programa pode ser classificado em seis
diferentes faixas: livre, 10, 12, 14, 16 ou 18 anos.

No rádio e na TV aberta existem horários apropriados para
que estes programas sejam exibidos, de acordo com a faixa etária classificada.

A Constituição Federal trata sobre o assunto?

Sim. O tema é tratado em alguns
dispositivos da CF/88. Confira:

Art. 21. Compete à União:

XVI
– exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de
programas de rádio e televisão;

Art. 220 (…)

§ 3º Compete à lei federal:

I – regular as diversões e espetáculos
públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas
etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se
mostre inadequada;

II – estabelecer os meios legais que
garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou
programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem
como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à
saúde e ao meio ambiente.

Art. 221. A produção e a programação
das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

(…)

IV – respeito aos valores éticos e
sociais da pessoa e da família.

Infração administrativa

Caso a emissora de rádio ou TV
exibisse o programa fora do horário recomendado, ela praticaria infração
administrativa e poderia ser punida com multa e até suspensão da
programação na hipótese de reincidência. Confira a redação do ECA:

Art. 254. Transmitir, através de rádio
ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua
classificação:

Pena – multa de vinte a cem salários de
referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá
determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.

Repare que, de acordo com a redação do art. 254 do ECA, as
emissoras de rádio e TV possuíam dois deveres impostos por lei:

1) Avisar, antes de o programa começar, qual é a
classificação etária do espetáculo (aquele famoso aviso: “programa recomendado
para todos os públicos” ou “programa
recomendado para maiores de 12 anos”
);

2) Somente transmitir os programas nos horários compatíveis
com a sua classificação etária. Ex: se o programa foi recomendado para maiores
de 12 anos, ele não podia ser exibido antes das 20h.

ADI 2404

Ocorre que, em 2016, o STF, ao julgar a ADI 2404, decidiu
que:

É inconstitucional a expressão “em horário diverso do
autorizado” contida no art. 254 do ECA.

STF. Plenário. ADI 2404/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
31/8/2016 (Info 837).

Veja abaixo um resumo do que decidiu o STF:

Liberdade de programação é uma forma de liberdade de expressão

A Constituição Federal garante a
liberdade de expressão (art. 5º, IX, da CF/88) e a liberdade de comunicação
social, prevista no art. 220 da CF/88:

Art. 220. A manifestação do pensamento,
a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo
não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Como consectário dessa garantia, as emissoras de rádio e TV
gozam de “liberdade de programação”, sendo esta uma das dimensões da liberdade
de expressão em sentido amplo.

Assim, a programação das emissoras deve permanecer como
sendo uma tarefa autônoma e livre de interferências do Poder Público.

Por outro lado, a criança e o adolescente, pela posição de
fragilidade em que se colocam, devem ser destinatários, tanto quanto possível,
de normas e ações protetivas voltadas ao seu desenvolvimento pleno e à
preservação contra situações potencialmente danosas a sua formação física,
moral e mental.

O caso em tela envolve, portanto, dois valores
constitucionais que devem ser sopesados para uma correta decisão: de um prisma,
a liberdade de expressão nos meios de comunicação; de outro, a necessidade de
garantir a proteção da criança e do adolescente.

O que fez a Constituição Federal para compatibilizar esses
dois valores? Ela determinou, em seu art. 21, XVI e art. 220, § 3º, que fosse
criado um sistema de classificação indicativa dos espetáculos.

Assim, os programas devem ser classificados de acordo com
faixas etárias e essa classificação deve ser divulgada aos telespectadores a
fim de que eles tenham as informações necessárias para decidir se permitem ou
não que as crianças e adolescentes assistam tais programas. No entanto, em
nenhum momento o texto constitucional determinou que as empresas sejam
obrigadas a veicular os programas em determinados horários, sob pena de
punição.

O sistema de classificação indicativa foi o ponto de
equilíbrio tênue adotado pela Constituição para compatibilizar os dois
postulados, a fim de velar pela integridade das crianças e dos adolescentes sem
deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão.

A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer,
informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças
e os adolescentes. Essa classificação desenvolvida pela União possibilita que
os pais, calcados na autoridade do poder familiar, decidam se a criança ou o
adolescente pode ou não assistir a determinada programação.

Classificação indicativa não se confunde com autorização para exibir os
programas

A Constituição conferiu à União e ao legislador federal
margem limitada de atuação no campo da classificação dos espetáculos e
diversões públicas. A autorização constitucional é para que a União classifique,
informe, indique as faixas etárias e/ou horários não recomendados. Ela não
pode, contudo, proibir, vedar ou censurar os programas.

A classificação indicativa deve ser entendida como um aviso aos usuários sobre o
conteúdo da programação, jamais como obrigação às emissoras de exibição em
horários específicos, especialmente sob pena de sanção administrativa.

Por essa razão, percebe-se que o art. 254 do ECA violou a
Constituição Federal ao instituir punição para as emissoras que transmitam
espetáculo “em horário diverso do autorizado”. O uso do verbo “autorizar” revela a ilegitimidade do
dispositivo legal.

O art. 255, ao estabelecer punição às empresas do ramo por
exibirem programa em horário diverso do autorizado, incorre, portanto, em abuso
constitucional.

Submissão de programa ao Ministério da Justiça

É legítimo que se exija que as emissoras submetam os
programas para serem analisados e classificados pelo Ministério da Justiça. No
entanto, a submissão de programa ao Ministério não consiste em condição para
que ele possa ser exibido, pois não se trata de uma licença ou de autorização
estatal. A CF/88 veda que se exija licença ou autorização do governo para a
exibição de programas de rádio ou TV.

Dessa forma, esta submissão ocorre, exclusivamente, com o
objetivo de que a União exerça sua competência administrativa para classificar,
a título indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão,
conforme determina o art. 21, XVI, da CF/88.

Imposição de horários para os programas é inconstitucional

O Estado não pode determinar que os programas somente possam
ser exibidos em determinados horários. Isso seria uma imposição, o que é vedado
pelo texto constitucional.

O Poder Público pode apenas recomendar os horários adequados. A
classificação dos programas é indicativa (e não obrigatória).

Censura prévia

A expressão “em horário diverso do autorizado”, contida no
art. 254 do ECA, embora não impedisse a veiculação de ideias, não impusesse
cortes nas obras audiovisuais, mas tão-somente exigisse que as emissoras
veiculassem seus programas em horário adequado ao público-alvo, implicava
verdadeira censura prévia, acompanhada de elemento repressor, de punição.

Esse caráter não se harmoniza com os arts. 5º, IX; 21, XVI;
e 220, § 3º, I, todos da CF/88.

Efeito pedagógico

A exibição do aviso de classificação indicativa deve ter
apenas efeito pedagógico, a exigir reflexão por parte do espectador e dos
responsáveis.

É dever estatal, nesse ponto, conferir maior publicidade aos
avisos de classificação, bem como desenvolver programas educativos acerca desse
sistema.

Permanece o dever de informar a classificação indicativa

É importante salientar que permanece o dever das emissoras
de rádio e de televisão de exibir ao público o aviso de classificação etária,
de forma antecedente e concomitante com a veiculação do conteúdo, regra essa
prevista no parágrafo único do art. 76 do ECA, sendo seu descumprimento
tipificado como infração administrativa pelo art. 254.

O que foi declarado inconstitucional foi apenas a punição
caso a emissora exiba o programa fora do horário recomendado.

Responsabilização judicial em caso de abusos

Vale ressaltar, no entanto, que as emissoras não estão
livres de responsabilidade. Isso porque será possível que elas sejam
processadas e responsabilizadas judicialmente caso pratiquem abusos ou danos à
integridade de crianças e adolescentes, tendo em conta, inclusive, a
recomendação do Ministério de Estado da Justiça em relação aos horários em que
determinada programação seria adequada.

É o caso, por exemplo, de uma emissora que exiba,
reiteradamente, programas violentos ou com fortes cenas de sexo em plena manhã
ou tarde. Nesse exemplo extremo, o Ministério Público poderia ajuizar ação
civil pública contra a emissora pedindo a sua responsabilização pelos danos
causados a crianças e adolescentes. Isso porque a liberdade de expressão não é
uma garantia absoluta e exige responsabilidade no seu exercício. Assim, as
emissoras devem observar na sua programação as cautelas necessárias às
peculiaridades do público infanto-juvenil.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA A BAND
(CASO “UM DRINK NO INFERNO”)

Feitos os necessários esclarecimentos acima, vejamos o
seguinte caso concreto:

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra
a TV Bandeirantes alegando que a Band exibiu o longa metragem “Um Drink no Inferno”
e diversos outros filmes em horários inadequados para a classificação
indicativa a eles dada.

Os filmes exigidos pela TV foram classificados pelo
Ministério da Justiça como sendo para maiores de 18 anos. Apesar disso, foram transmitidos
antes das 23h, que é o horário mínimo recomendado para essa classificação.

O MPF pediu a condenação da emissora ao pagamento de pagamento
de indenização por danos morais coletivos.

Abstraindo o caso concreto, é possível, em tese, que
uma emissora de TV ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em
razão da exibição de filme fora do horário recomendado pelo órgão competente?

SIM.

É possível, em tese, a condenação da emissora
de televisão ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, quando, ao
exibir determinada programação fora do horário recomendado, verificar-se uma
conduta que afronte gravemente os valores e interesse coletivos fundamentais.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.840.463-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,
julgado em 19/11/2019 (Info 663).

Como vimos acima, no julgamento da ADI 2404/DF, o STF
reconheceu a inconstitucionalidade da expressão “em horário diverso do
autorizado”, contida no art. 254 do ECA.

A classificação indicativa não pode ser obrigatória nem ser
vista como uma censura prévia dos conteúdos veiculados em rádio e televisão.
Essa classificação possui um caráter pedagógico e complementar ao auxiliar os
pais a definir o que seus filhos podem, ou não, assistir e ouvir.

A liberdade de expressão, como todo direito ou garantia
constitucional, exige responsabilidade no seu exercício, de modo que as
emissoras deverão resguardar, em sua programação, as cautelas necessárias às
peculiaridades do público infanto-juvenil.

Logo, a despeito de ser a classificação da programação
apenas indicativa e não proibir a sua veiculação em horários diversos daquele
recomendado, cabe ao Poder Judiciário controlar eventuais abusos e violações ao
direito à programação sadia, previsto no art. 221 da CF/88. Isso, inclusive, ficou
expresso na ementa do julgado do STF:

(…) 4. Sempre será possível a responsabilização judicial das
emissoras de radiodifusão por abusos ou eventuais danos à integridade das crianças
e dos adolescentes, levando-se em conta, inclusive, a recomendação do
Ministério da Justiça quanto aos horários em que a referida programação se
mostre inadequada. Afinal, a Constituição Federal também atribuiu à lei federal
a competência para “estabelecer meios legais que garantam à pessoa e à família
a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e
televisão que contrariem o disposto no art. 221” (art. 220, § 3º, II, CF/88). (…)

STF. Plenário. ADI 2404, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
31/08/2016.

No caso concreto,
houve dano moral coletivo?

NÃO.

O dano moral coletivo se dá in re ipsa, isto é,
independentemente da comprovação de dor, sofrimento ou abalo psicológico.

Entretanto, a sua configuração somente ocorrerá quando a
conduta antijurídica afetar, intoleravelmente, os valores e interesses
coletivos fundamentais, mediante conduta maculada de grave lesão. Isso porque
esse instituto tão importante não pode ser tratado de forma trivial, ou seja,
não pode ser banalizado. Nesse sentido:

(…) 2. O dano moral coletivo é aferível in re ipsa,
dispensando, portanto, a demonstração de prejuízos concretos, mas somente se
configura se houver grave ofensa à moralidade pública, causando lesão a valores
fundamentais da sociedade e transbordando da justiça e da tolerabilidade. (…)

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 100.405/GO, Rel. Min. Raul Araújo,
julgado em 16/10/2018.

(…) Se, por um lado, o dano moral
coletivo não está relacionado a atributos da pessoa humana e se configura in
re ipsa
, dispensando a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo
abalo moral, de outro, somente ficará caracterizado se ocorrer uma lesão a
valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta
e intolerável.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.502.967/RS, Rel.
Ministra Nancy Andrighi, julgado em 07/08/2018.

Diante dessas considerações, conclui-se que, ao menos em
tese, seria possível a condenação da emissora ré ao pagamento de indenização
por danos morais coletivos, desde que tivesse ficado demonstrada uma conduta
que afrontasse gravemente os valores e interesses coletivos fundamentais.

No caso concreto, contudo, não houve essa demonstração,
razão pela qual não se justifica a condenação da emissora ao pagamento de danos
extrapatrimoniais coletivos.

Segundo restou apurado nos autos, em um dos casos a exibição
inadequada ocorreu em razão de falha técnica no sistema de controle da emissora.
Em outra hipótese houve posterior reclassificação do filme pelo Ministério da Justiça.
Em outros casos a emissora fez a edição dos filmes, com supressão das cenas
impróprias para a respectiva faixa etária.

Vale ressaltar, ainda, que em todos os casos, a exibição dos
filmes ocorreu apenas parcialmente em horário inadequado.

Desse modo, a conduta da ré, a despeito da sua irregularidade,
não foi capaz de abalar, de forma intolerável, a tranquilidade social dos telespectadores,
assim como os seus valores e interesses fundamentais.

Artigo Original em Dizer o Direito

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