ASPECTOS
GERAIS SOBRE A LEI 12.990/2014

O que
a Lei estabelece?

A Lei nº 12.990/2014
determinou que deveria haver cotas para negros nos concursos públicos federais.

Assim, 20% das
vagas oferecidas nos concursos públicos realizados pela administração pública
federal devem ser destinadas a candidatos negros (art. 1º da Lei).

A lei
obriga expressamente quais entidades?

Órgãos,
autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista
federais, ligadas ao Poder Executivo.

Número
mínimo de vagas

A reserva de
vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público
for igual ou superior a 3 (art. 1º, § 1º).

Em outras
palavras, se o concurso previr menos que 3 vagas, não haverá cotas para negros.

O que
acontece se, ao reservar os 20% de vagas aos negros, surgir um número
fracionado? Ex: em um concurso para 9 vagas, 20% será igual a 1,8 vagas. O que
fazer nesse caso?

• Se a fração
for igual ou maior que 0,5 (cinco décimos): o número de vagas deverá ser
aumentado para o primeiro número inteiro subsequente. Ex: concurso para 9 vagas
(20% = 1,8). Logo, será arredondado para 2 vagas destinadas a negros.

• Se a fração
for menor que 0,5 (cinco décimos): o número de vagas deverá ser diminuído para
o número inteiro imediatamente inferior. Ex: concurso para 16 vagas (20% =
3,2). Logo, será arredondado para 3 vagas de negros.

Edital
deverá informar o número de vagas da cota

O edital do
concurso deverá especificar o total de vagas reservadas aos candidatos negros
para cada cargo ou emprego público oferecido.

CONSTITUCIONALIDADE
DA LEI 12.990/2014

Em 2016, a OAB ajuizou ação
declaratória de constitucionalidade em defesa da Lei nº 12.990/2014 pedindo que
o STF declarasse esta norma compatível com a CF/88. O que decidiu o Supremo?

O STF julgou procedente a ADC, declarando
a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014. Além disso, a Corte fixou uma tese
para ser observada pela Administração Pública e demais órgãos do Poder Judiciário:

É
constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos
para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração
pública direta e indireta.

STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min.
Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (repercussão geral) (Info 868).

Vejamos abaixo um resumo dos
argumentos desenvolvidos pelo Min. Relator Luis Roberto Barroso:

Três dimensões da igualdade

A igualdade proíbe que haja uma hierarquização
dos indivíduos e que sejam feitas distinções sem fundamento.

No entanto, a igualdade também
transmite um comando, qual seja, o de que deve haver a neutralização de
injustiças históricas, econômicas e sociais e que haja um maior respeito à
diferença.

No mundo contemporâneo, a
igualdade se expressa em três dimensões: a) a igualdade formal; b) a igualdade
material; c) a igualdade como reconhecimento.

a) Igualdade formal

A igualdade formal significa
dizer que não pode haver privilégios e tratamentos discriminatórios.

A igualdade formal está ligada ao
chamado Estado liberal e foi idealizada como uma forma de reação aos privilégios
da nobreza e do clero.

Pode ser subdividida em dois
aspectos:

• Igualdade perante a lei:
comando dirigido ao aplicador da lei – judicial e administrativo –, que deverá
aplicar as normas em vigor de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que
se encontrem sob sua incidência.

• Igualdade na lei: comando
endereçado ao legislador, que não deve instituir discriminações ou tratamentos
diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um
fim legítimo.

A igualdade formal encontra-se prevista
no art. 5º, caput, da CF/88: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”.

b) Igualdade material

O conceito de igualdade material
está ligado a demandas por redistribuição de riqueza e poder e, em última
análise, por justiça social.

O desenvolvimento da ideia de
igualdade material surge a partir da constatação de que não basta proibir que
haja privilégios. É preciso atuar ativamente contra a desigualdade econômica e em
favor da superação da miséria.

Mais do que a igualdade perante a
lei, deve-se assegurar algum grau de igualdade perante a vida.

Dessa forma, deve-se garantir a proteção
jurídica do polo mais fraco de certas relações econômicas, a criação de redes
de proteção social e mecanismos de redistribuição de riquezas.

Para isso, é necessário que o
Poder Público faça a entrega de prestações positivas adequadas em matérias como
educação, saúde, saneamento, trabalho, moradia, assistência social.

A igualdade material encontra-se
prevista no art. 3º, I e III, da CF/88, que afirma que a República Federativa
do Brasil tem como objetivos “construir uma sociedade livre, justa e solidária”
e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais”.

c) Igualdade como reconhecimento

A igualdade como reconhecimento
significa o respeito que se deve ter para com as minorias, sua identidade e suas
diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras.

A injustiça a ser combatida nesse
caso tem natureza cultural ou simbólica. Ela decorre de modelos sociais de representação
que, ao imporem determinados códigos de interpretação, recusariam os “outros” e
produziriam a dominação cultural, o não reconhecimento ou mesmo o desprezo.

Determinados grupos são
marginalizados em razão da sua identidade, suas origens, religião, aparência
física ou orientação sexual, como os negros, judeus, povos indígenas, ciganos, deficientes,
mulheres, homossexuais e transgêneros.

O instrumento para se alcançar a
igualdade como reconhecimento é a transformação cultural ou simbólica.

O objetivo é constituir um mundo
aberto à diferença (“a difference-friendly world”).

A igualdade como reconhecimento encontra-se
também prevista no art. 3º, IV, da CF/88, que determina que um dos objetivos
fundamentais da República é o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Vale ressaltar que, em muitos
casos, alguns grupos sofrem tanto uma desigualdade material como uma desigualdade
quanto ao reconhecimento. As mulheres e os negros, por exemplo, sofrem
injustiças cujas raízes se encontram tanto na estrutura econômica, quanto na
estrutura cultural-valorativa, exigindo ambos os tipos de remédio.

Voltando à análise da Lei

A Lei nº 12.990/2014 atende aos
três planos de igualdade acima explicados.

A igualdade formal, como vimos,
impede a lei de estabelecer privilégios e diferenciações arbitrárias entre as
pessoas, isto é, exige que o fundamento da desequiparação seja razoável e que o
fim almejado seja compatível com a Constituição. No caso analisado, o
fundamento e o fim da Lei nº 12.990/2014 são razoáveis, motivados por um dever
de reparação histórica e por circunstâncias que explicitam um racismo
estrutural na sociedade brasileira a ser enfrentado.

Quanto à igualdade material, o
racismo estrutural gerou uma desigualdade material profunda. Desse modo,
qualquer política redistributivista precisará indiscutivelmente assegurar
vantagens competitivas aos negros.

Por fim, a igualdade como
reconhecimento significa respeitar as pessoas nas suas diferenças e procurar
aproximá-las, igualando as oportunidades. A política afirmativa instituída pela
Lei nº 12.990/2014 tem exatamente esse papel.

Há uma dimensão simbólica
importante no fato de negros ocuparem posições de destaque na sociedade
brasileira. Além disso, há um efeito considerável sobre a autoestima das
pessoas. Afinal, cria-se resistência ao preconceito alheio. Portanto, a ideia
de pessoas negras e pardas serem símbolo de sucesso e ascensão e terem acesso a
cargos importantes influencia a autoestima das comunidades negras. Ademais, o
pluralismo e a diversidade tornam qualquer ambiente melhor e mais rico.

Dessa forma, o STF concluiu que a
Lei nº 12.990/2014 supera o teste da igualdade formal, material e como
reconhecimento.

Princípio do concurso público

A Lei nº 12.990/2014 não viola o princípio
do concurso público. Isso porque, para serem investidos nos cargos públicos, os
candidatos negros têm de ser aprovados no concurso. Caso não atinjam o patamar
mínimo, sequer disputarão as vagas.

A única coisa que a Lei fez foi criar
duas formas distintas de preenchimento de vagas, em razão de reparações
históricas, sem abrir mão do critério mínimo de suficiência.

Princípio da eficiência

A Lei nº 12.990/2014 não afronta
o princípio da eficiência.

Não necessariamente os candidatos
aprovados em primeiro lugar, segundo o critério da nota, serão absolutamente
melhores que os outros.

A noção de meritocracia deve
comportar nuances que permitam a competição em igualdade de condições.

Pode-se até mesmo imaginar um ganho
importante de eficiência. Afinal, a vida não é feita apenas de competência
técnica, ou de capacidade de pontuar em concurso, mas sim de uma dimensão de
compreensão do outro e de variadas realidades. A eficiência pode ser muito
bem-servida pelo pluralismo e pela diversidade no serviço público.

Princípio da proporcionalidade

Por fim, o STF entendeu que a Lei
nº 12.990/2014 não ofende o princípio da proporcionalidade.

A demanda por reparação histórica
e ação afirmativa não foi resolvida com a simples existência de cotas para
acesso às universidades públicas. Isso não foi suficiente.

O impacto das cotas raciais não
se manifesta no mercado de trabalho automaticamente, pois há um tempo de espera
até que essas pessoas estudem, se formem e se tornem competitivas.

Além disso, a proporção de 20%
escolhida pelo legislador é extremamente razoável. Se essa escolha fosse
submetida a um teste de proporcionalidade em sentido estrito, também não
haveria problema, porque 20%, em rigor, representariam menos da metade do percentual
de negros na sociedade brasileira.

CRITÉRIOS DE IDENTIFICAÇÃO DOS
COTISTAS

Critério da autodeclaração

Segundo o art. 2º da Lei nº
12.990/2014, poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles
que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público,
conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE.

Esse é o chamado critério da
autodeclaração.

Declaração falsa

Se ficar constatado que o
candidato fez declaração falsa sobre sua cor, a Lei prevê que ele será
eliminado do concurso.

Caso a declaração falsa somente
seja constatada após o candidato já ter sido nomeado, a sua admissão poderá ser
anulada, após processo administrativo em que lhe sejam assegurados o
contraditório e a ampla defesa.

Além disso, o candidato ainda
poderá ser processado criminalmente.

Critério da heteroidentificação

O STF afirmou que o critério da autodeclaração
é constitucional. Isso porque deve-se respeitar as pessoas tal como elas se
percebem.

Entretanto, a Corte afirmou que é
possível também que a Administração Pública adote um controle heterônomo,
sobretudo quando existirem fundadas razões para acreditar que houve abuso na
autodeclaração.

Exemplos desse controle
heterônomo: exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do
concurso; exigência de apresentação de fotos pelos candidatos; formação de
comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento
posterior à autodeclaração.

Cautelas no critério de heteroidentificação

Vale ressaltar que o controle
heterônomo pode ser realizado, mas desde que observadas algumas cautelas a fim de
que não haja violação à dignidade da pessoa humana, devendo ser garantido o
contraditório e a ampla defesa aos candidatos interessados.

Em suma

É
legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de
heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e
garantidos o contraditório e a ampla defesa.

STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min.
Roberto Barroso, julgado em 8/6/2017 (repercussão geral) (Info 868).

APLICAÇÃO DA LEI

A reserva de vagas tratada pela
Lei nº 12.990/2014 vale para todos os três Poderes da União (Executivo,
Legislativo e Judiciário), além do MPU e DPU.

A Lei nº 12.990/2014 não se
aplica para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. No entanto, caso
estes entes editem leis semelhantes, elas também são consideradas
constitucionais.

Não ficou definido, neste
julgamento, se as cotas valem também para concursos de remoção e promoção. Isso
porque este tema não constou do pedido nem foi discutido em memoriais.

PREENCHIMENTO DAS VAGAS

Os candidatos negros concorrem
apenas às vagas da cota?

NÃO. Os candidatos negros
concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla
concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.

Ex: em determinado concurso, 80
vagas eram destinadas à ampla concorrência e 20 reservadas para negros. João,
que se autodeclarou preto no momento da inscrição, ficou em 25º lugar na lista
de candidatos negros. Ao mesmo tempo, na lista de ampla concorrência, ele ficou
em 79º lugar. Logo, ele será nomeado nas vagas destinadas à ampla concorrência.

Candidato negro que foi aprovado
nas vagas de ampla concorrência

Os candidatos negros aprovados
dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados
para efeito do preenchimento das vagas reservadas (art. 3º, § 1º).

Ex: em determinado concurso, 80
vagas eram destinadas à ampla concorrência e 20 reservadas para negros. Pedro,
que se autodeclarou preto no momento da inscrição, ficou em 19º lugar na lista
de candidatos negros. Ao mesmo tempo, na lista de ampla concorrência, ele ficou
em 79º lugar. Logo, ele será nomeado nas vagas destinadas à ampla concorrência
e a sua vaga na lista da cota (19º lugar) será utilizada por outro candidato
negro.

Candidato negro que desiste da
nomeação ou posse

Em caso de desistência de
candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo
candidato negro posteriormente classificado.

Ex: em determinado concurso, 20
vagas eram reservadas para negros. Lucas, que se autodeclarou preto no momento
da inscrição, ficou em 20º lugar na lista de candidatos negros. Ocorre que ele
desistiu de sua nomeação em razão de ter passado em outro certame. Logo, a
administração pública terá que convocar o 21º candidato negro.

O que acontece se as vagas
reservadas aos candidatos negros não forem integralmente preenchidas?

Na hipótese de não haver
candidatos negros aprovados em número suficiente para ocupar as vagas
reservadas, tais vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência
e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.

Ex: em determinado concurso, 4
vagas eram reservadas para candidatos negros. Ocorre que somente 3 candidatos
negros fizeram a pontuação mínima exigida (nota de corte). Assim, essa quarta
vaga poderá ser preenchida por candidato não negro.

Nomeação dos candidatos

A Lei n.º 12.990/2014 prevê a
seguinte regra:

Art. 4º A nomeação dos candidatos
aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que
consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas
reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.

Quanto aos critérios de
alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos, o STF exemplificou
a forma correta de interpretar a lei. No caso de haver 20 vagas, 4 seriam
reservadas a negros, obedecida a seguinte sequência de ingresso: primeiro
colocado geral, segundo colocado geral, terceiro colocado geral, quarto
colocado geral, até que o quinto convocado seria o primeiro colocado entre os
negros, e assim sucessivamente.

Dessa forma, evita-se colocar os
aprovados da lista geral primeiro e somente depois os aprovados por cotas.

Vigência do sistema de cotas para
negros

O sistema de cotas para negros
previsto na Lei nº 12.990/2014 irá durar pelo prazo de 10 anos. Após esse
período, acabam as cotas para negros em concursos públicos da administração
pública federal, salvo se for verificado que a medida ainda é necessária
quando, então, deverá ser editada uma nova lei prorrogando o prazo.

Artigo Original em Dizer o Direito

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