Sistema de cotas
Como é de conhecimento geral,
algumas universidades públicas em nosso país adotam sistemas de cotas.
Por meio deste sistema, alguns
alunos, por ostentarem características peculiares ligadas à cor, etnia, classe
social ou por serem oriundos de escolas públicas têm direito a um percentual de
vagas que não é submetido à concorrência ampla.
ADPF 186
O Partido Democratas ingressou
com uma ADPF contra os atos (resoluções, atas de reunião, editais de
vestibular, entre outros) da Universidade de Brasília – UnB que instituíram o
sistema de cotas raciais.
Julgamento do STF
Nesta semana (25
e 26/04), o STF julgou a ADPF.
O Relator do processo foi o Min. Ricardo
Lewandowski.
O que decidiu o STF?
Por unanimidade, o STF decidiu
que o sistema de cotas é CONSTITUCIONAL e julgou improcedente a ADPF.
Vejamos agora um resumo dos argumentos expostos no voto de quase 50 páginas do Min. Relator
Ricardo Lewandowski. Tais argumentos podem ser importantes em uma dissertação que trate sobre o tema em uma prova discursiva.
Igualdade formal versus igualdade
material
De acordo com o artigo 5º, caput,
da Constituição, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”.
A CF/88 proclamou o princípio da
isonomia não apenas no plano formal, mas buscou emprestar a máxima concreção a
esse importante postulado, de maneira a assegurar a igualdade material ou
substancial, levando em consideração – é claro
a diferença que os distingue
por razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais,
além de atentar, de modo especial, para a desequiparação ocorrente no mundo dos
fatos entre os distintos grupos sociais.
Para possibilitar que a igualdade
material entre as pessoas seja levada a efeito, o Estado pode lançar mão de ações
afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual,
atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a
permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
Justiça distributiva
A transformação do direito à
isonomia em igualdade de possibilidades, sobretudo no tocante a uma
participação equitativa nos bens sociais, apenas é alcançado, segundo John
Rawls, por meio da aplicação da denominada “justiça distributiva”.
Só ela permite superar as
desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal
determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e
oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um
todo.
No que interessa ao presente
debate, a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica da justiça
distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si. Mas,
convém registrar, ao levar em conta a inelutável realidade da estratificação
social, não se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos. Ela
consiste em uma técnica de distribuição de justiça, que, em última análise,
objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados,
especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na
periferia da sociedade.
Conceito de ações afirmativas
Ações afirmativas são medidas
especiais e concretas para assegurar o desenvolvimento ou a
proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com
o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos
direitos do homem e das liberdades fundamentais (art. 2°, II, da Convenção para
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das
Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968).
Origem das ações afirmativas
Segundo o Min. Lewandowski, ao
contrário do que se costuma pensar, as políticas de ações afirmativas não são
uma criação norte-americana. Elas, em verdade, têm origem na Índia, país
marcado, há séculos, por uma profunda diversidade cultural e étnico-racial,
como também por uma conspícua desigualdade entre as pessoas, decorrente de uma
rígida estratificação social.
Com o intuito de reverter esse
quadro, politicamente constrangedor e responsável pela eclosão de tensões
sociais desagregadoras – e que se notabilizou pela existência de uma casta
“párias” ou “intocáveis” -, proeminentes lideranças políticas indianas do
século passado, entre as quais o patrono da independência do país, Mahatma
Gandhi, lograram aprovar, em 1935, o conhecido Government of India Act.
Critérios para ingresso no ensino superior
Diante disso, entendeu o Ministro ser
essencial calibrar os critérios de seleção à universidade para que se possa dar
concreção aos objetivos maiores colimados na Constituição. Nesse sentido, as
aptidões dos candidatos devem ser aferidas de maneira a conjugar-se seu
conhecimento técnico e sua criatividade intelectual ou artística com a capacidade
potencial que ostentam para intervir nos problemas sociais.
Adoção do critério étnico-racial
O uso do termo “raça” é
justificável nas políticas afirmativas em razão deste “fator” ter sido utilizado,
historicamente, para a construção de “hierarquias” entre as pessoas. Assim, se
a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser utilizada
para desconstruí-las.
Após serem “desconstruídas” estas
hierarquias, as ações afirmativas baseadas na raça podem ser abandonadas,
adotando-se então apenas políticas universalistas materiais.
Consciência étnico-racial como fator de exclusão
Os programas de ação afirmativa são
uma forma de compensar a discriminação histórica, culturalmente arraigada, não
raro, praticada de forma inconsciente e à sombra de um Estado complacente.
As ações afirmativas, portanto,
encerram também um relevante papel simbólico. Uma criança negra que vê um negro
ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga
o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante
componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.
O papel integrador da Universidade
Todos sabem que as universidades,
em especial as universidades públicas, são os principais centros de formação
das elites brasileiras. Não constituem apenas núcleos de excelência para a
formação de profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas representam
também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos
altos cargos públicos e privados do País.
É certo afirmar, ademais, que o
grande beneficiado pelas políticas de ação afirmativa não é aquele estudante
que ingressou na universidade por meio das políticas de reserva de vagas, mas
todo o meio acadêmico que terá a oportunidade de conviver com o diferente ou,
nas palavras de Jürgen Habermas, conviver com o outro.
Reserva de vagas ou estabelecimento de cotas
A política de reserva de vagas
não é estranha à Constituição, tanto que a Carta Magna prevê, em seu art. 37,
VIII, a reserva de um percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas
portadoras de deficiência.
Transitoriedade das políticas de ação afirmativa
É importante ressaltar a natureza
transitória das políticas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre
negros e brancos não resultam, como é evidente, de uma desvalia natural ou
genética, mas decorrem de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram
posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de
dominação dos primeiros pelos segundos.
Assim, na medida em que essas
distorções históricas forem corrigidas e a representação dos negros e demais
excluídos nas esferas públicas e privadas de poder atenda ao que se contém no
princípio constitucional da isonomia, não haverá mais qualquer razão para a subsistência
dos programas de reserva de vagas nas universidades públicas, pois o seu
objetivo já terá sido alcançado.
Assim, as políticas de ação
afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua
manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão
social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam
converter-se em benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo
social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado
dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática.
No caso da Universidade de
Brasília, que figurou como arguida na ADPF, o critério da temporariedade foi
cumprido, uma vez que o Programa de Ações Afirmativas instituído pelo Conselho
Superior Universitário – CONSUNI daquela instituição estabeleceu a necessidade
de sua reavaliação após o transcurso do período de 10 anos.
Dipositivo da decisão
Isso posto, considerando, em
especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de
Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e
diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii)
revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados
e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão periódica de
seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o
princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF.

Artigo Original em Dizer o Direito

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