O julgado comentado envolve o
delito de importunação sexual (art. 215-A do CP). Antes de verificarmos o que
foi decidido, irei fazer uma breve exposição sobre esse crime. Se estiver sem
tempo, pode ir diretamente para a explicação do julgado.

 

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

A Lei nº 13.718/2018 acrescentou um novo delito no art.
215-A do Código Penal, chamado de “importunação sexual”:

Importunação sexual

Art. 215-A. Praticar contra alguém
e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria
lascívia ou a de terceiro:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5
(cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

 

 

Em que consiste o delito:

– O agente (que pode ser homem ou
mulher)

– pratica contra a vítima (que
também pode ser homem ou mulher)

– ato libidinoso

– com o objetivo de satisfazer a
própria lascívia

– ou a lascívia de terceiro.

 

Ato libidinoso

Ato libidinoso é todo ato de
cunho sexual capaz de gerar no sujeito a satisfação de seus desejos sexuais.

Exs: penetração do pênis na
vagina (chamada de conjunção carnal), penetração anal, sexo oral, masturbação,
toques íntimos etc.

 

Lascívia

Lascívia é o prazer sexual, o
prazer carnal, a luxúria.

Obs: luxúria não tem nada a ver
com luxo, mas sim com sexo.

 

Exemplo 1:

Dentro de um ônibus, determinado
homem faz automasturbação e ejacula nas costas de uma passageira que está
sentada à sua frente.

Esta conduta abominável,
lamentavelmente, tem ocorrido com certa frequência.

O fato não podia ser enquadrado
como estupro (art. 213 do CP), considerando que não houve violência ou grave
ameaça:

Art. 213. Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10
(dez) anos.

 

Também não podia ser classificado
como violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP), tendo em vista que o ato
libidinoso não foi praticado com a vítima:

Violação sexual mediante fraude

Art. 215.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato
libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a
livre manifestação de vontade da vítima:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6
(seis) anos.

 

Diante disso, essa conduta era
“punida” como contravenção penal:

Art. 61. Importunar alguém, em lugar
público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:

Pena – multa, de duzentos mil réis a
dois contos de réis.

 

Agora,
com a Lei nº 13.718/2018, este fato é tipificado como importunação sexual,
delito do art. 215-A do CP.

Vale ressaltar que a Lei nº
13.718/2018 REVOGOU a contravenção penal do art. 61 do DL 3.688/41.

 

Exemplo 2:

O art. 215-A do CP também serve
para punir a conduta do frotteurismo.

O frotteurismo consiste em “tocar e esfregar-se em uma pessoa sem seu
consentimento. O comportamento geralmente ocorre em locais com grande
concentração de pessoas, dos quais o indivíduo pode escapar mais facilmente de
uma detenção (por ex., calçadas movimentadas ou veículos de transporte
coletivo). Ele esfrega seus genitais contra as coxas e nádegas ou acaricia com
as mãos a genitália ou os seios da vítima. Ao fazê-lo, o indivíduo geralmente
fantasia um relacionamento exclusivo e carinhos com a vítima.” (http://www.psiquiatriageral.com.br/
dsm4/sexual4.htm
. Acesso em 29/09/2018).

No frotteurismo não há violência
ou grave ameaça, razão pela qual não se enquadra como estupro (art. 213 do CP),
mas sim o delito do art. 215-A do CP.

 

“Se o ato não constitui crime
mais grave”

Há uma subsidiariedade expressa
no preceito secundário do art. 215-A do CP. Isso significa que, se a conduta
praticada puder se enquadrar em um delito mais grave, não será o crime do art.
215-A do CP.

Ex: se o agente “praticar contra
alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a
própria lascívia”, mas utilizando-se de violência ou grave ameaça, poderá
configurar o crime do art. 213 do CP (mais grave e mais específico).

 

Bem jurídico protegido

É a liberdade sexual.

 

Sujeito ativo

Crime comum.

Pode ser praticado por qualquer
pessoa (homem ou mulher).

 

Sujeito passivo

Pode ser praticado contra
qualquer pessoa (homem ou mulher).

Assim, o art. 215-A do CP é crime
bicomum.

 

Se a vítima for pessoa menor de
14 anos

Neste caso, a conduta poderá
configurar o crime do art. 218-A do CP:

Satisfação de lascívia mediante
presença de criança ou adolescente

Art. 218-A. Praticar, na presença de
alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal
ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro)
anos

 

A depender de peculiaridades do
caso concreto, o fato pode até mesmo ser enquadrado como estupro de vulnerável.
Veja esta situação analisada pelo STJ (com adaptações):

O homem convenceu uma criança de
10 anos a ir até o motel com ele.

Chegando lá, o agente pediu que a
garota ficasse nua na sua frente, tendo sido atendido.

O simples fato de ver a menina
nua já satisfez o sujeito que, após alguns minutos olhando a criança,
determinou que ela vestisse novamente as roupas.

Foram, então, embora do local sem
que o agente tenha tocado na garota.

A criança acabou contando o que
se passou a seus pais e o sujeito foi denunciado pelo Ministério Público pela
prática de estupro de vulnerável.

O STJ manteve a imputação:

A conduta de contemplar lascivamente,
sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode
permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de
vulnerável.

STJ. 5ª Turma. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik,
julgado em 2/8/2016 (Info 587).

 

O sujeito passivo precisa ser uma
pessoa específica

Conforme explica com muita
propriedade Rogério Sanches:

“O tipo exige que o ato
libidinoso seja praticado contra alguém, ou seja, pressupõe uma pessoa
específica a quem deve se dirigir o ato de autossatisfação. Assim é não só
porque o crime está no capítulo relativo à liberdade sexual, da qual apenas
indivíduos podem ser titulares, mas também porque somente desta forma se evita
confusão com o crime de ato obsceno. Com efeito, responde por importunação
sexual quem, por exemplo, se masturba em frente a alguém porque aquela pessoa
lhe desperta um impulso sexual; mas responde por ato obsceno quem se masturba
em uma praça pública sem visar a alguém específico, apenas para ultrajar ou
chocar os frequentadores do local.” (Lei 13.718/18: Introduz modificações nos
crimes contra a dignidade sexual. Disponível em: http://meusitejuridico.com.br/2018/09/25/lei-13-71818-introduz-modificacoes-nos-crimes-contra-dignidade-sexual/.
Acesso em 02/10/2018).

 

Elemento subjetivo

O crime é punido a título de
dolo.

Exige-se um elemento subjetivo
específico (vulgo “dolo específico”): o agente deve ter praticado a conduta “com
o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.

Não admite modalidade culposa.

 

Importunação sexual x Ato obsceno

Existe um
outro crime (ato obsceno) que, no caso concreto, poderia ser confundido com a importunação
sexual. Vamos comparar os dois crimes:

IMPORTUNAÇÃO
SEXUAL

ATO OBSCENO

Art. 215-A. Praticar contra alguém e
sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria
lascívia ou a de terceiro:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco)
anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Art. 233. Praticar ato obsceno em lugar
público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena – detenção, de três meses a um
ano, ou multa.

O sujeito passivo é determinado (uma
pessoa determinada ou um grupo de pessoas determinado).

Sujeito passivo é a coletividade (crime
vago).

Exige-se um elemento subjetivo
especial. O agente pratica a conduta “com o objetivo de satisfazer a própria
lascívia ou a de terceiro”.

O elemento subjetivo é o dolo, não se
exigindo do sujeito nenhuma finalidade específica.

A conduta não precisa ter sido
praticada em lugar público, ou aberto ou exposto a público. Ex: pode ser
praticado no interior de uma casa.

Para que o crime se configure, é
indispensável que o ato obsceno tenha sido praticado em lugar público, ou
aberto ou exposto ao público.

Para que o crime se configure, é
indispensável que o ato libidinoso tenha sido praticado contra alguém que não
concordou com isso. A análise da anuência ou não da pessoa atingida é fundamental.

Não importa se houve ou não anuência
das pessoas que estavam presentes. Se o ato obsceno foi praticado em lugar
público, ou aberto ou exposto ao público, haverá o crime.

Infração de médio potencial ofensivo.

Infração de menor potencial ofensivo.

 

Tentativa

Na teoria, é possível. Isso
porque se trata de crime plurissubsistente.

Crime plurissubsistente é aquele
no qual a execução pode ser fracionada em vários atos.

 

Ação penal

Trata-se de crime de ação pública
INCONDICIONADA.

A partir da Lei nº 13.718/2018,
todos os crimes contra a dignidade sexual são crimes de ação pública
incondicionada (art. 225 do CP).

 

Infração de médio potencial
ofensivo

A importunação sexual possui pena
de 1 a 5 anos de reclusão. Logo, classifica-se como infração de médio potencial
ofensivo. Isso significa que é possível a concessão de suspensão condicional do
processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95).

 

Não se trata de crime hediondo

Dos delitos contra a dignidade
sexual, apenas o estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º), o estupro de
vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º) e o favorecimento da
prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente
ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º) são crimes hediondos.

 

Revogação do art. 61 da Lei de
Contravenções Penais

A Lei nº
13.718/2018, além de inserir o crime do art. 215-A ao CP, também revogou o art.
61 do DL 3.688/41 (contravenção penal que era chamada de importunação ofensiva
ao pudor). Compare:

IMPORTUNAÇÃO
OFENSIVA AO PUDOR

IMPORTUNAÇÃO
SEXUAL

Lei de Contravenções Penais (DL
3.688/41)

Art. 61. Importunar alguem, em lugar
público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor:

Pena – multa, de duzentos mil réis a
dois contos de réis.

Código Penal

Art. 215-A. Praticar contra alguém e
sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria
lascívia ou a de terceiro:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco)
anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Era uma contravenção penal.

Trata-se de crime.

Revogada pela Lei nº 13.718/2018.

Incluído pela Lei nº 13.718/2018.

 

Pergunta: houve abolitio criminis? Os indivíduos que
estavam respondendo ou já haviam sido condenados por importunação ofensiva ao
pudor foram beneficiados com a Lei nº 13.718/2018 e poderão pedir o
reconhecimento de abolito criminis?

NÃO. A conduta descrita no art.
61 do DL 3.688/41 passou a ser prevista no art. 215-A do Código Penal, ainda
que com outra redação mais abrangente.

Desse modo, não houve houve abolitio criminis, mas sim continuidade
normativo-típica.

O princípio da continuidade
normativa ocorre “quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta
continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal
continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou
normativamente diverso do originário.” (Min. Gilson Dipp, em voto proferido no
HC 204.416/SP).

Logo, para as pessoas que estavam
respondendo ou haviam sido condenadas pelo art. 61 do DL 3.688/41 antes da Lei
nº 13.654/2018, nada muda.

 

Os indivíduos que ejacularam nas
vítimas ou que praticaram frotteurismo antes do dia 25/09/2018 poderão
responder pelo crime do art. 215-A do CP?

NÃO. Somente podem responder pelo
art. 215-A do CP aqueles que praticaram a conduta a partir do dia 25/09/2018
(se foi no dia 25/09/2018, já incide o art. 215-A).

Como a Lei nº 13.718/2018 incluiu
uma nova infração penal (art. 215-A do CP) mais grave que a contravenção penal
do art. 61, ela representa novatio legis
in pejus
(lei penal mais grave), não podendo retroagir para alcançar
situações pretéritas (art. 5º, XL, da CF/88).

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

Imagine a seguinte situação
adaptada (nomes fictícios):

Uma criança, na época com cinco
anos de idade, foi deixada aos cuidados de Regina, então companheira de João.

A criança ficou no apartamento
onde moravam Regina e João.

Em determinado momento, na sala
do apartamento, João se posicionou em frente da criança e, com a calça abaixada
e o pênis ereto, mostrou seu órgão genital, pedindo que a criança “chupasse seu
pinto”.

Regina entrou na sala no momento e
interrompeu o ato, desferindo um soco no pênis de João, retirando a criança de
perto dele.

João foi denunciado pelo
crime de estupro de vulnerável na forma tentada (art. 217-A c/c art. 14, II, do
CP):

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou
praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15
(quinze) anos.

 

Art. 14. Diz-se o crime:

(…)

II – tentado, quando, iniciada a
execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

 

Ao final da instrução, o juízo de
origem julgou procedente a pretensão punitiva, condenando o réu.

Inconformado, o réu recorreu,
requerendo a desclassificação do crime para importunação sexual (art. 215-A do
CP).

O Tribunal de Justiça deu
provimento à apelação e desclassificou o crime.

De acordo com o acórdão da Corte Estadual:

“(…) No caso
dos autos, a desclassificação torna-se viável, diante do princípio da
proporcionalidade.

Na hipótese,
diante da pequena extensão dos atos praticados (mostrar o pênis ereto ao
infante e pedir para que este o chupasse), sem que ocorresse qualquer contato
entre as partes, muito embora próximos (ambos estavam na sala de tv) permite
tal conclusão”.

 

O MP não concordou e interpôs
recurso especial pedindo o restabelecimento da condenação por estupro de
vulnerável tentado.

 

O STJ concordou com o
pedido do MP? 

SIM.

A 3ª Seção do STJ, por
unanimidade, deu provimento ao recurso especial do MP para restabelecer a
sentença condenatória de 1º grau, que reconheceu a tentativa de estupro de
vulnerável, e fixou a seguinte tese:

Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia,
própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos
configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP),
independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo
possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do
CP).

STJ. 3ª Seção.
REsp 1.959.697-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 08/06/2022 (Recurso
Repetitivo – Tema 1121) (Info 740).

 

Cifra negra nas
estatísticas

O abuso sexual contra o público
infantojuvenil é uma realidade que insiste em perdurar ao longo do tempo.

A grande dificuldade desse
problema, porém, é dimensioná-lo, pois uma parte considerável dos delitos,
conforme a doutrina, “ocorrem no interior dos lares, que permanecem recobertos
pelo silêncio das vítimas”.

Há uma elevada taxa de cifra
negra nas estatísticas. Além do natural medo de contar para os pais (quando
estes não são os próprios agressores), não raro essas vítimas sequer, como
alerta a doutrina, “possuem a compreensão adequada da anormalidade da situação
vivenciada”.

 

Prática de qualquer ato
libidinoso destinado à satisfação da lascívia contra menor de 14 anos configura
estupro de vulnerável

A prática de qualquer ato
libidinoso, compreendido como aquele destinado à satisfação da lascívia, com
menor de 14 anos, configura o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do
CP):

(…) 3. No caso em apreço, o acusado, ao tocar nos seios da
criança, ainda que por cima da roupa, praticou todos os atos necessários à
tipificação do delito de estupro de vulnerável, que não exige atos invasivos,
conforme jurisprudência deste Tribunal.

4. Não obstante a inovação trazida pelo art. 215-A do Código
Penal (introduzido pela Lei 13.718/2018), “a Terceira Seção desta Corte
Superior sedimentou a jurisprudência, então já dominante, pela presunção
absoluta da violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso
diverso com pessoa menor de 14 anos” (REsp n. 1.320.924/MG, relator Ministro
ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/8/2016, DJe de 29/8/2016,
grifei), de modo que é “inaplicável o art. 215-A do CP para a hipótese fática
de ato libidinoso diverso de conjunção carnal praticado com menor de 14 anos,
pois tal fato se amolda ao tipo penal do art. 217-A do CP, devendo ser
observado o princípio da especialidade” (AgRg nos EDcl no AREsp n.
1.225.717/RS, relator Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em
21/2/2019, DJe 6/3/2019). (…)

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.824.358/MG, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, julgado em 03/11/2020.

 

Não é necessário contato
físico

Vale ressaltar que é sempre
necessário o especial fim de agir: “para satisfazer à lascívia”. Porém, não se
tolera as atitudes voluptuosas, por mais ligeiras que possam parecer. Em alguns
precedentes, ressaltou-se até mesmo que o delito prescinde inclusive de contato
físico entre vítima e agressor:

É pacífica a compreensão, portanto, de que o estupro de
vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à
dignidade sexual da vítima, conforme já consolidado por esta Corte Nacional.

Doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do
contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal
entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o
efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida.

STJ. 6ª Turma. HC 478.310/PA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 9/2/2021.

 

Assim, a maior ou menor superficialidade
dos atos libidinosos, a intensidade do contato ou a virulência da ação
criminosa não são critérios relevantes para a tipificação do delito em questão.

Além disso, é válido lembrar que
outras circunstâncias incidentais, como o consentimento da vítima, sua
experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre
vítima e agente delitivo, igualmente, não se revelam capazes de excluir o crime
ou modificar a figura típica.

 

Não se aplica o art. 215-A
por força dos princípios da especialidade e da subsidiariedade

A superveniência do art. 215-A do CP (crime de importunação
sexual) trouxe novamente a discussão à tona, mas o conflito aparente de normas
é resolvido pelo princípio da especialidade do art. 217-A do CP, que possui o
elemento especializante “menor de 14 anos”, e também pelo princípio da
subsidiariedade expressa do art. 215-A do CP, conforme se verifica de seu
preceito secundário in fine:

Art. 215-A. Praticar contra alguém e
sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria
lascívia ou a de terceiro:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco)
anos, se o ato não
constitui crime mais grave
.

 

Estudando a nova figura típica, e
cotejando com as outras então existentes, a doutrina observa que, na
importunação sexual, a falta de anuência da vítima não pode consistir em
nenhuma forma de constrangimento.

Se houver constrangimento no
sentido de “obrigar” alguém à prática de ato de libidinagem, estará configurado
o crime de estupro, ante a presença do verbo nuclear do tipo do art. 213 do CP.

Nos
casos de estupro de vulnerável, por outro lado, é necessário advertir que não
há propriamente um constrangimento à prática de atos sexuais. Não existe sequer
presunção de constrangimento ou de violência. Na figura típica do art. 217-A do
CP, pune-se simplesmente a prática de atos de libidinagem com alguém menor de
catorze anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem
o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra
causa, não pode oferecer resistência.

Por isso, ao contrário do que
ocorre no cotejo entre os arts. 213 e 215-A, ambos do CP, o constrangimento não
é elemento especializante do estupro de vulnerável. O fator especializante do
art. 217-A do CP é simplesmente a idade da vítima: “vítima menor de 14
(catorze) anos”.

 

Mandamento constitucional
de criminalização

Desclassificar a prática de ato libidinoso com pessoa menor
de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP, crime de médio potencial ofensivo
que admite a suspensão condicional do processo, desrespeitaria ao mandamento
constitucional de criminalização do art. 227, §4º, da CF/88, que determina a
punição severa do abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes:

Art. 227 (…)

§ 4º A lei punirá severamente o abuso,
a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

 

Tratados internacionais

Desclassificar a prática de ato
libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP também
significaria o descumprimento a tratados internacionais.

O art. 19 da Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança é peremptório ao impor aos Estados a
adoção de medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais
apropriadas para proteger a criança contra “todas” as formas de abuso.

 

Princípio da
proporcionalidade no aspecto da proibição da proteção insuficiente

Em verdade, a subsunção no art.
217-A do CP prestigia o princípio da proporcionalidade, notadamente no aspecto
da proibição da proteção insuficiente, bem como o princípio da proteção
integral, conforme visto. Vale lembrar que a criança e adolescente são
indivíduos que possuem uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art.
6º do ECA). Por isso, a proteção especial não se mostra afrontosa ao princípio
da isonomia.

De fato, o legislador pátrio
poderia, ou mesmo deveria, promover uma graduação entre as espécies de condutas
sexuais praticadas em face de pessoas vulneráveis, seja por meio de tipos
intermediários, o que poderia ser feito através de crimes privilegiados, ou
causas especiais de diminuição. De sorte que, assim, tornar-se-ia possível
penalizar mais ou menos gravosamente a conduta, conforme a intensidade de
contato e os danos (físicos ou psicológicos) provocados. Mas, infelizmente, não
foi essa a opção do legislador e, em matéria penal, a estrita legalidade se
impõe ao que idealmente desejam os aplicadores da lei criminal.

 

Absoluta intolerância de
atos de conotação sexual envolvendo menores de 14 anos

Verifique-se que a opção
legislativa é pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com
pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos.

“O abuso sexual contra
crianças e adolescentes é problema jurídico, mas sobretudo de saúde pública,
não somente pelos números colhidos, mas também pelas graves consequências para
o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo”. Nesse sentido, “não é somente a
liberdade sexual da vítima que deve ser protegida, mas igualmente o livre e
sadio desenvolvimento da personalidade sexual da criança” (BIANCHINI, A.;
MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.; GOMES, L. F.; LÉPORE, P. E.;
CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo:
Saraiva, 2013, e-book, Introdução, cap. 1).

Tanto a jurisprudência desta
Corte Superior quanto a do Supremo Tribunal Federal são pacíficas em rechaçar a
pretensão de desclassificação da conduta de praticar ato libidinoso com pessoa
menor de 14 anos para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP).

Artigo Original em Dizer o Direito

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