É POSSÍVEL
QUE O FISCO REQUISITE DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS INFORMAÇÕES BANCÁRIAS SOBRE
OS CONTRIBUINTES SEM INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO?

O sigilo bancário é protegido
pela CF/88?

SIM. A CF/88
não utiliza a expressão “sigilo bancário”, mas isso está sim protegido em dois
incisos do art. 5º da CF/88. Confira:

Art. 5º (…)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;  

(…)

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na
forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal; 

O legislador
infraconstitucional reafirmou a proteção ao sigilo bancário no caput do art. 1º
da LC 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições
financeiras:

Art. 1º As instituições financeiras
conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

No § 1º do art. 1º da LC
105/2001, o legislador elenca quem são consideradas instituições financeiras. A
lista é extensa e abrange bancos de qualquer espécie, distribuidoras de valores
mobiliários, corretoras de câmbio e até as bolsas de valores.

Para
que haja acesso aos dados bancários (“quebra do sigilo bancário”), é necessária
autorização judicial?

Em regra, sim. Em regra, para que
se tenha acesso aos dados bancários de uma pessoa, é necessário prévia autorização
judicial por se tratar de verdadeira cláusula de reserva de jurisdição.

E no caso do Fisco (Administração
Tributária)?
A Receita Federal pode requisitar, sem autorização judicial,
informações bancárias das instituições financeiras?

SIM. Essa possibilidade está prevista no art. 6º da LC 105/2001.

O art. 6º afirma que as autoridades e os
agentes fiscais tributários podem ter acesso às movimentações bancárias, mesmo
sem autorização judicial, desde que exista um processo administrativo instaurado
ou um procedimento fiscal em curso e essas informações sejam indispensáveis.
Confira:

Art. 6º As autoridades e os agentes
fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras,
inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo
instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados
indispensáveis pela autoridade administrativa competente
.

Parágrafo único. O resultado dos
exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão
conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Logo, a lei autoriza que a Receita Federal requisite diretamente das
instituições financeiras informações sobre as movimentações bancárias dos
contribuintes.

Exemplo:

Samuel era sócio administrador de uma empresa.

A Receita Federal instaurou procedimento fiscal contra a sociedade
empresária sob a suspeita de que estaria havendo sonegação de tributos.

No curso do procedimento, a Receita, sem autorização judicial,
requisitou diretamente do banco os extratos com as movimentações bancárias da pessoa
jurídica.

A Receita fundamentou sua requisição no art. 6º da LC nº 105/2001.

De posse dos extratos fornecidos pelo banco, o Fisco constatou que
realmente houve sonegação de tributos e, por conta disso, autuou a pessoa
jurídica e fez a constituição definitiva do crédito tributário.

Tudo bem. Entendi que a Lei prevê essa possibilidade. Mas tal
previsão é constitucional? Este art. 6º da LC 105/2001, que autoriza o Fisco a
ter acesso a informações bancárias sem autorização judicial, é compatível com a
CF/88?

SIM. Em 2016, o STF decidiu que o art. 6º da LC 105/2001 é CONSTITUCIONAL.

Mas o art. 6º não representa uma “quebra de sigilo
bancário” sem autorização judicial?

NÃO. O STF entendeu que esse repasse das informações dos bancos
para o Fisco não pode ser chamado de “quebra de sigilo bancário”. Isso porque
as informações são passadas para o Fisco (ex: Receita Federal) em caráter
sigiloso e permanecem de forma sigilosa na Administração Tributária. Logo, é
uma tramitação sigilosa entre os bancos e o Fisco e, por não ser acessível a
terceiros, não pode ser considerado violação (quebra) do sigilo.

Assim, repito, na visão do STF, o que o art. 6º da LC 105/2001 faz
não é quebra de sigilo bancário, mas somente a “transferência de sigilo” dos
bancos ao Fisco. Os dados, até então protegidos pelo sigilo bancário,
prosseguem protegidos pelo sigilo fiscal.

Para o STF, o simples fato de o Fisco ter acesso aos dados
bancários do contribuinte não viola a garantia do sigilo bancário. Só haverá
violação se esses dados “vazarem” para pessoas estranhas ao órgão fazendário.
Aí sim haveria quebra do sigilo bancário por ter sido exposta a intimidade do
contribuinte para terceiros. Em casos de
vazamento, a LC 105/2001 prevê punições ao responsável, que estará sujeito à
pena de reclusão, de 1 a 4 anos, mais multa, além de responsabilização civil,
culminando com a perda do cargo (art. 10).

Outros argumentos levantados pelos Ministros para considerarem o
art. 6º constitucional:

• O sigilo bancário não é absoluto e deve ceder espaço ao
princípio da moralidade nas hipóteses em que transações bancárias indiquem
ilicitudes.

• A LC 100/2001 é um instrumento para fiscalizar o dever
fundamental do contribuinte de pagar tributos. O dever fundamental de pagar
tributos está alicerçado na ideia de solidariedade social. Assim, dado que o
pagamento de tributos, no Brasil, seria um dever fundamental — por representar
o contributo de cada cidadão para a manutenção e o desenvolvimento de um Estado
que promove direitos fundamentais —, é preciso que sejam adotados mecanismos
efetivos de combate à sonegação fiscal.

• A prática prevista na LC 105/2001 é comum em vários países
desenvolvidos e a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo
questionado seria um retrocesso diante dos compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil para combater ilícitos como a lavagem de dinheiro e
evasão de divisas e para coibir práticas de organizações criminosas.

• A identificação de patrimônio, rendimentos e atividades
econômicas do contribuinte pela administração tributária dá efetividade ao
princípio da capacidade contributiva, que, por sua vez, sofre riscos quando se
restringem as hipóteses que autorizam seu acesso às transações bancárias dos
contribuintes.

• A LC 105/2001 não viola a CF/88. Isso porque o legislador
estabeleceu requisitos objetivos para requisição de informação pela
administração tributária às instituições financeiras e exigiu que, quando essas
informações chegassem ao Fisco, ali mantivessem o dever de sigilo. Com efeito,
o parágrafo único do art. 6º preconiza que o resultado dos exames, as
informações e os documentos deverão ser conservados em sigilo, observada a
legislação tributária. Assim, não há ofensa a intimidade ou qualquer outro
direito fundamental, pois a LC 105/2001 não permite a “quebra de sigilo
bancário”, mas sim a transferência desse sigilo dos bancos ao Fisco.

• O art. 6º da LC 105/2001 é taxativo e razoável ao facultar o
exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras somente se
houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e
tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa
competente.

As Receitas estadual e municipal também poderão requisitar dos
bancos informações sobre movimentações bancárias?

SIM. Se você ler novamente o art. 6º da LC 105/2001, irá observar
que o dispositivo fala que estão autorizados a requisitar as informações
bancárias as autoridades e agentes fiscais tributários não apenas da União (Receita
Federal), mas também dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
.

Assim, as Receitas estadual e municipal (Secretarias de Fazenda
estadual e municipal) também poderão requisitar dos bancos, sem autorização
judicial, informações sobre movimentações bancárias sem que isso configure
quebra do sigilo bancário.

Vale ressaltar, no entanto, que, para que os Estados, DF e Municípios
possam fazer uso dessa prerrogativa prevista no art. 6º da LC 105/2001, eles
precisarão, antes, editar um ato normativo que regulamente e traga, com
detalhes, todas as regras operacionais para aplicação do dispositivo legal.

Neste regulamento deverão ser previstos sistemas adequados de
segurança e registros de acesso para evitar a manipulação indevida dos dados,
garantindo-se ao contribuinte a transparência do processo.

A Receita Federal, atualmente, já pode requisitar tais informações
bancárias porque possui esse regulamento. Trata-se do Decreto 3.724/2001, que
regulamenta o art. 6º da Lei
Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, relativamente à requisição,
acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de informações referentes a
operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas
equiparadas
.”

Portanto, os Estados, DF e Municípios também poderão requisitar
informações de instituições bancárias relativas a seus clientes. Para isso, no
entanto, repito, precisarão editar o mencionado regulamento, além de só poderem
fazer essa requisição se houver processo administrativo instaurado ou
procedimento fiscal em curso e tais dados forem considerados indispensáveis
pela autoridade administrativa competente.

Resumindo o que decidiu o STF em 2016:

As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem requisitar diretamente das
instituições financeiras informações sobre as movimentações bancárias dos
contribuintes. Esta possibilidade encontra-se prevista no art. 6º da LC
105/2001, que foi considerada constitucional pelo STF. Isso porque esta
previsão não se caracteriza como “quebra” de sigilo bancário, ocorrendo apenas
a “transferência de sigilo” dos bancos ao Fisco.

Vale ressaltar que os Estados-Membros e os Municípios somente
podem obter as informações previstas no art. 6º da LC 105/2001, uma vez
regulamentada a matéria de forma análoga ao Decreto Federal nº 3.724/2001,
observados os seguintes parâmetros:

a) pertinência temática entre a obtenção das informações
bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo
instaurado;

b) prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do
processo e a todos os demais atos, garantido o mais amplo acesso do
contribuinte aos autos, permitindo-lhe tirar cópias, não apenas de documentos,
mas também de decisões;

c) sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico;

d) existência de sistemas eletrônicos de segurança que fossem
certificados e com o registro de acesso; e, finalmente,

e) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção
de desvios.

STF. Plenário. ADI 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI
2859/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgados em 24/2/2016 (Info 815).

STF. Plenário. RE 601314/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em
24/2/2016 (repercussão geral) (Info 815).

É LEGÍTIMO O COMPARTILHAMENTO DOS DADOS
OBTIDOS PELA RECEITA FEDERAL COM MINISTÉRIO PÚBLICO MESMO SEM AUTORIZAÇÃO
JUDICIAL?

Em 2019, o STF debateu um
desdobramento do tema acima explicado. O debate jurídico travado foi agora o
seguinte: é possível que as informações bancárias obtidas pelo Fisco sem
autorização judicial sejam compartilhadas com o Ministério Público para serem utilizadas
em processos criminais?

Vamos entender melhor este tema voltando ao nosso exemplo.

Samuel era sócio administrador de uma empresa.

A Receita Federal instaurou procedimento fiscal contra a sociedade
empresária sob a suspeita de que estaria havendo sonegação de tributos.

No curso do procedimento, a Receita, sem autorização judicial,
requisitou diretamente do banco os extratos com as movimentações bancárias da
empresa (art. 6º da LC nº 105/2001).

De posse dos extratos, o Fisco constatou que realmente houve
sonegação de tributos e, por conta disso, autuou a pessoa jurídica e fez a
constituição definitiva do crédito tributário. Até aqui temos apenas um
processo administrativo-tributário (cobrança de tributos e multas).

Ocorre que a Receita Federal, após o procedimento administrativo e
constituição do débito tributário, encaminhou, ao Ministério Público Federal, uma
“Representação Fiscal Para Fins Penais (RFFP)”, com os dados regularmente
obtidos no curso da fiscalização e remetidos em caráter sigiloso pelo banco.

Vale ressaltar que é um dever da Receita encaminhar as
representações fiscais para fins penais ao Ministério Público, se constatada
possível prática de ilícito penal, conforme prevê o art. 83 da Lei nº 9.430/96:

Art. 83. A representação fiscal para
fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º
e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a
Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público
depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a
exigência fiscal do crédito tributário correspondente.

O Procurador da República, com base nesses elementos informativos,
denunciou Samuel como incurso no crime do art. 1º, I, da Lei nº 8.137/90
(sonegação fiscal):

Art. 1º Constitui crime contra a
ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer
acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar
declaração falsa às autoridades fazendárias;

(…)

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, e multa.

Ao se defender, Samuel sustentou a ilicitude da prova colhida
(extratos bancários) alegando que teria havido uma quebra de sigilo bancário
sem autorização judicial.

Desse modo, esses dados não poderiam ser utilizados pelo
Ministério Público no processo penal.

Desde 2016, não havia mais dúvidas de que o Fisco pode requisitar
diretamente as informações bancárias. Isso está previsto no art. 6º da LC
105/2001 e foi considerado constitucional pelo STF. A dúvida, como já dito, era
a seguinte: esses dados podem ser compartilhados com o Ministério Público para
serem utilizados em processos criminais?

SIM. Em 2019, o STF pacificou que é legítimo
que a Receita Federal compartilhe o procedimento fiscalizatório que ela
realizou para apuração do débito tributário com os órgãos de persecução penal
para fins criminais (Polícia Federal, Ministério Público etc.), não sendo
necessário, para isso, prévia autorização judicial.

STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).

Garantia constitucional do sigilo não é absoluta

A Constituição Federal garante a inviolabilidade da intimidade e
da vida privada (art. 5º, X) e a inviolabilidade de dados (art. 5º, XII). Como
decorrência dessas garantias, o texto constitucional protege os dados
financeiros, o sigilo bancário e o sigilo fiscal. Entretanto, essa garantia não
é absoluta.

Seja no direito constitucional brasileiro, seja no direito
comparado, os direitos fundamentais não podem servir como escudo protetivo à
prática de atividades ilícitas, de atividades criminosas. Não é essa a
finalidade das garantias individuais, das liberdades públicas.

Em virtude de não se permitir um desvio de finalidade, não há mais
dúvidas de que existe a possibilidade de relativização dessas inviolabilidades
se existirem situações excepcionais, razoáveis e proporcionais.

Relatividade dos direitos fundamentais é prevista em documentos
internacionais

A proteção lícita do exercício dos direitos fundamentais é
prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas (ONU). Em seu art. XXIX, o documento afirma tanto a finalidade quanto a
relatividade dos direitos individuais.

Na finalidade, sujeita o exercício dos direitos e liberdades
individuais às limitações estabelecidas pela lei.

Restrições excepcionais às liberdades públicas são constitucionais

Diante desse caráter relativo, pode-se concluir que não existe inconstitucionalidade
na previsão de excepcionais restrições às liberdades públicas, inclusive à
intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados, desde que a finalidade seja
garantir direitos e liberdades dos demais membros da sociedade às justas
exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade
democrática.

A excepcional relativização das liberdades públicas, dentro de
critérios razoáveis, é possível no âmbito dos três Poderes, salvo quando exista
expressamente cláusula de reserva jurisdicional, que não é a situação em
apreço.

No caso do sigilo financeiro, principalmente, há uma finalidade
internacional da defesa da probidade, combate à criminalidade organizada e à
corrupção.

O raciocínio jurídico construído na decisão do STF de 2016 pode
ser aplicado aqui

O STF, ao julgar, em 24/02/2016, as ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859 e
o RE 601314/SP, declarou ser possível à Receita o acesso a dados genéricos e, se
houver indícios de irregularidades e presentes os pressupostos legais, a
instituição de procedimento fiscalizatório, admitida a quebra do sigilo fiscal
e bancário, para verificar se há ou não ilicitude.

Naquela ocasião, o STF entendeu que a previsão do art. 6º da LC
105/2001, que relativizava o sigilo financeiro e o sigilo de dados, atendia aos
requisitos de excepcionalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

Cumpridos os padrões internacionais, esse compartilhamento,
mecanismo de inteligência financeira, tinha dupla finalidade: evitar o
descumprimento de normas tributárias e combater práticas criminosas.

A atuação da Receita Federal ocorre em dois estágios

A atuação da Receita Federal, nestes casos, ocorre em dois
estágios importantes e sequenciais:

Primeiro estágio

Previsto no art. 5º da LC 105/2001

É a possibilidade de acesso às operações bancárias limitado aos
dados genéricos e cadastrais dos correntistas, vedada a inclusão de qualquer
elemento que permita identificar a origem ou natureza dos gastos efetuados.

É um acesso amplo ou sistêmico.

Se, desses dados genéricos, surgirem informações indicativas da
prática de um ilícito tributário, passa-se ao segundo estágio.

Segundo estágio

Previsto no art. 5º, § 4º, e art. 6º da LC 105/2001

Há um acesso incidental.

Aqui, a Receita, após instaurar um procedimento específico,
poderá requisitar as informações e os documentos necessários, realizar
fiscalização e auditoria para a apuração dos fatos.

Conforme já explicado, é preciso haver a instauração de
procedimento administrativo fiscal por ordem de superior hierárquico e com
prévia intimação do contribuinte. Se não o instaurar, a Receita não poderá
quebrar o sigilo.

Para evitar-se abusos, há normas que disciplinam com rigor o
procedimento.

Percentualmente, o número de procedimentos que chegam ao segundo
estágio é muito pequeno.

Por que é importantíssimo destacar a existência dessa sequência?

Porque, para chegar até o Ministério Público, vai ter que passar
pelo primeiro estágio, vai ter que passar pelo segundo estágio.

Nesse segundo estágio, faz-se um filtro, e só o que for
imprescindível é que pode ou não ser compartilhado com o Ministério Público.

De um mar de informações e de cruzamento de dados, no primeiro
estágio, há um funil estreito para o segundo estágio, que é o acesso amplo e
sistêmico. E mesmo desse, poucos casos irão ao Ministério Público, porque,
muitos casos são de informações errôneas ou omissão não dolosa que o contribuinte
corrige imediatamente. Ou seja, o funil é gigantesco do primeiro para o segundo
estágio; e, também, é grande do segundo estágio para o compartilhamento para
fins penais.

E esse segundo estágio só ocorre se houver anomalia no cruzamento
de dados genéricos.

Trata-se de prova emprestada

Não permitir a informação da íntegra do procedimento
fiscalizatório, com todos os dados fiscais e bancários a partir dos quais
verificada a materialidade e indícios de autoria, vai contra o mecanismo legal
de relativização.

Não há sentido em se produzir prova lícita, obtida de acordo com a
Constituição e a legislação, e não permitir o compartilhamento com o titular da
ação penal, que é outro órgão de fiscalização.

O compartilhamento dessa prova, obtida mediante procedimento regular,
nada mais é que típica prova emprestada, lícita. Somente serão enviadas as
informações imprescindíveis. Deverá ser encaminhada a prova lícita, produzida
durante o procedimento que ensejou o lançamento definitivo do tributo e trouxe
indícios de autoria de um crime material contra a ordem tributária. Isso porque
apenas a partir do lançamento definitivo, conforme o Enunciado 24 da Súmula
Vinculante do STF, a materialidade do delito fica constatada. Relembre:

Súmula vinculante 24-STF: Não se
tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º,
incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

Receita pode enviar a integralidade do procedimento

A Receita pode enviar tudo — dados, provas, informações — que a
fez chegar ao lançamento definitivo do tributo e embasá-lo, por ser necessário
à constituição da materialidade na infração penal. O restante, como já é feito,
ou se devolve ao contribuinte ou se destrói.

Eventual excesso, qualquer desvio formal ou material dessa
atuação, deve ser combatido e poderá ser afastado pelo Poder Judiciário. O que
se está dizendo é que não há inconstitucionalidade ou ilegalidade no
compartilhamento entre Receita e Ministério Público das provas e dados
imprescindíveis à conformação e ao lançamento do tributo.

É LEGÍTIMO O COMPARTILHAMENTO DOS
RELATÓRIOS DE INTELIGÊNCIA FINANCEIRA COM O MINISTÉRIO PÚBLICO MESMO SEM
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL?

Antes de prosseguir na explicação do julgado, é importante
aprender o que é a chamada UIF?

Unidade de Inteligência Financeira (UIF) é…

– um órgão vinculado administrativamente ao Banco Central

– mas com autonomia técnica e operacional

– sendo responsável por produzir e gerir informações de
inteligência financeira que sirvam para prevenir e combater crimes como lavagem
de lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo, financiamento da
proliferação de armas de destruição em massa etc.

– sendo também responsável por estabelecer uma interlocução
institucional com órgãos e entidades nacionais, estrangeiros e internacionais
que tenham conexão com a matéria.

Assim, a Unidade de Inteligência é um grande banco de dados que
recebe informações dos bancos, das seguradoras, dos cartórios de registro de imóveis,
de joalherias. Em seguida, cruza dados e produz relatórios que poderão ser
encaminhados à Receita Federal e aos órgãos de persecução penal em caso de
indícios de ilícitos tributários ou de infrações penais.

Antigo COAF

A UIF faz atualmente as mesmas funções que eram desempenhadas pelo
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). A MP 893/2019
transformou o COAF na Unidade de Inteligência Financeira.

As competências do ex-COAF (atualmente UIF) estão previstas nos
arts. 14 e 15 da Lei nº 9.613/98.

Noções gerais sobre a UIF

A UIF recebe informações dos bancos, seguradoras, cartórios,
joalherias, cruza os dados e produz relatórios de inteligência. Vale ressaltar
que a UIF não checa a veracidade das informações nem abre investigações.

A Lei nº 9.613/98 estabelece as hipóteses em que a UIF deve ser
obrigatoriamente comunicada. São as que saem do normal do sistema financeiro,
do sistema bancário.

A Unidade produz relatórios, informações, não só para estabelecer
na via administrativa e legislativa novos mecanismos de prevenção, mas também
para punir quem eventualmente estiver praticando atividades ilícitas.

A UIF não pode quebrar o sigilo bancário e fiscal por conta
própria. Pode trabalhar a informação, produzir relatório, identificar a
irregularidade e mandar para os demais órgãos, como a Receita a o Parquet.

Relatório de inteligência financeira da UIF

A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683/98) determina, em seu
art. 11, que as instituições financeiras e demais pessoas físicas e jurídicas
que trabalhem com recursos financeiros, moeda estrangeira, títulos mobiliários
etc. (art. 9º) comuniquem ao COAF (atualmente, UIF) qualquer movimentação
financeira “suspeita” (“atípica”), ou seja, que ultrapasse determinado valor
que é fixado pela autoridade administrativa.

Ex: se uma pessoa faz um depósito ou um saque acima de determinado
valor no banco, essa informação (com o nome do indivíduo) é informada à UIF.

Ex2: se uma pessoa compra uma pedra preciosa ou uma joia acima de
determinado valor em dinheiro, a joalheria é obrigada a informar essa
circunstância à UIF.

A partir disso, a UIF analisa a comunicação recebida com o
objetivo de identificar se existe nela algum indício de lavagem de dinheiro, de
financiamento do terrorismo ou de outros crimes. Caso seja identifica algum
indício de crime, é elaborado um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) que
é encaminhado às autoridades competentes (Receita Federal, Polícia Federal,
Ministério Público Federal).

Segundo explica a UIF, essa análise é realizada por meio de uma
metodologia que utiliza critérios objetivos, sendo utilizada a tecnologia de machine
learning
. Assim, o que determina se a operação financeira realizada será fichada
em relatório é a combinação de fatores que compõem a classificação de risco e
prioridade, que é realizada por um software de inteligência artificial.

Depois que o RIF é concluído, ele ainda passa por instâncias
internas individuais e colegiadas antes que seja autorizada sua difusão para as
autoridades competentes.

Sendo aprovado por essas instâncias internas da UIF, o relatório
(RIF) é encaminhado à Receita Federal, Polícia Federal ou Ministério Público
Federal, conforme seja o caso.

Vale ressaltar que a UIF não faz investigações. Ela apenas coleta,
analisa e cruza dados, produzindo um relatório de inteligência (uma espécie de
“alerta”) que será encaminhado aos órgãos de persecução penal. Essa atividade,
contudo, repito, não é de investigação de infrações penais.

Ampliação do debate para abranger a UIF

No recurso extraordinário examinado pelo STF (RE 1055941/SP)
discutia-se uma condenação criminal que utilizou como prova o procedimento
fiscalizatório que a Receita Federal encaminhou ao MPF.

Apesar disso, o STF decidiu que o julgamento e a definição da tese
deveriam abranger não apenas os procedimentos compartilhados pela Receita
Federal, mas também os relatórios encaminhados pela UIF (antigo COAF).

Para a maioria dos Ministros, era importante o exame da possibilidade
ou não do compartilhamento nas duas hipóteses (Receita e UIF).

Em ambas as situações (Receita e UIF), o mecanismo de
compartilhamento, o destinatário dos dados, a legislação aplicada e os
compromissos internacionais são os mesmos. Assim, se o STF não examinasse, na
mesma oportunidade, a situação da UIF, isso poderia gerar mais dúvidas do que
certeza jurídica.

Ademais, não raras vezes a atuação da Receita começa com
informações dadas pela UIF.

A conclusão do STF para o compartilhamento de dados da Receita vale
também para os relatórios de inteligência financeira da UIF? A UIF pode, sem
autorização judicial, compartilhar com a Polícia e o Ministério Público os
relatórios de inteligência financeira para que esses órgãos utilizem tais dados
em investigações ou processos criminais?

SIM. O STF, neste mesmo julgamento, aproveitou o debate do tema e
fixou a tese de que também é constitucional o compartilhamento dos relatórios
de inteligência financeira da UIF com os órgãos de persecução penal para fins
criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial.

STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).

Não há inconstitucionalidade na atuação da UIF

A atuação da UIF, de ofício ou a pedido, é apenas nos limites
legais. Se um órgão pedir informação, a UIF deve devolver a resposta nos exatos
limites que poderia realizar se fosse espontaneamente. Não pode extrapolar e
sequer tem poderes para isso.

A UIF irá buscar no banco de dados, que é preexistente e renovado
diariamente, verificar e informar o que possui.

Dessa maneira, o ministro vislumbrou inexistir inconstitucionalidade
ou ilegalidade na atuação da UIF. seja espontânea, seja em face de eventual pedido.

Qual é a natureza jurídica do relatório de inteligência da UIF?

Tem natureza jurídica equivalente à de “peças de informação”.

“O Código de Processo Penal, genericamente, dá o nome de peças de
informações a todo e qualquer conjunto indiciário resultante das atividades
desenvolvidas fora do inquérito policial, a exemplo de um procedimento
investigatório criminal presidido pelo próprio órgão ministerial, um relatório
de comissão parlamentar de inquérito, etc.” (LIMA, Renato Brasileiro. Código
de Processo Penal comentado.
2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017, p. 162).

O que o membro do Ministério Público faz ao receber um relatório
de inteligência?

O membro do MP, ao receber um relatório de inteligência, poderá
adotar três providências principais:

1) entender que já existem indícios suficientes de autoria e
materialidade e oferecer denúncia;

2) instaurar procedimento de investigação criminal (PIC) ou
requisitar inquérito policial para complementar as informações trazidas pelo
relatório;

3) pedir o arquivamento dessas peças de informação, caso repute
que o relatório de inteligência não contém indícios de crimes, nos termos do art.
28 do CPP:

Art. 28.  Se o órgão do Ministério Público, ao invés de
apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de
quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as
razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao
procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do
Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao
qual só então estará o juiz obrigado a atender.

Assim, o relatório de inteligência que é enviado ao Ministério
Público deve receber o mesmo tratamento de qualquer peça de informação. Do
contrário, o controle jurisdicional do sistema acusatório previsto no CPP estaria
sendo ferido.

Qual é o valor probante do relatório de inteligência financeira?

O STF decidiu não fixar, neste julgamento, o valor probante do
relatório de inteligência financeira, ou seja, se seria possível condenar
apenas com base nele ou se ele seria apenas um meio de obtenção de provas.

Conforme explicou o Min. Alexandre de Moraes, em seu voto:

“(…) não seria o caso de fixarmos, desde já, taxativamente o
valor probante dos relatórios de inteligência. Não me parece possível afirmar
taxativamente que os relatórios de inteligência seriam somente meio de obtenção
de prova, porque, nas informações e dados, pode haver prova documental que foi
enviada à UIF e que, deverá ser livremente valorada pelo magistrado, de acordo
com sua convicção. Faço, portanto, essa ressalva.”

Em suma, as teses fixadas pelo STF a respeito do tema foram as
seguintes:

1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de
inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da
Receita Federal do Brasil (RFB), que define o lançamento do tributo, com os
órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia
autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em
procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle
jurisdicional.

2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior,
deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de
sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos
de apuração e correção de eventuais desvios.

STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).

Artigo Original em Dizer o Direito

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