Imagine a seguinte situação hipotética:

João é aposentado do regime geral de
previdência social (INSS), recebendo R$ 3 mil a título de proventos.

Ele propõe ação judicial contra o INSS
pedindo a revisão de sua aposentadoria sob o argumento de que o valor teria
sido calculado de forma errada.

O juiz concorda com os argumentos do
autor e concede tutela provisória de urgência (“tutela antecipada”), determinando
que o INSS fique pagando mensalmente R$ 4 mil de proventos.

A Turma Recursal reforma a sentença do
magistrado, revogando a tutela provisória de urgência (“tutela antecipada”)
anteriormente concedida e julgando improcedente o pedido.

Ocorre que João recebeu 10 meses desse
valor a mais por força da tutela provisória de urgência.

 

Indaga-se: segundo o STJ, o autor terá
que devolver a quantia recebida?

SIM.

Em 2014, o STJ fixou a seguinte tese no Tema Repetitivo 692:

A reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da
ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos.

STJ. 1ª Seção. REsp 1.401.560-MT, Rel. para acórdão Min. Ari
Pargendler, julgado em 12/2/2014 (Recurso Repetitivo – Tema 692) (Info 570).

 

Vale ressaltar que, depois desse precedente do STJ, houve alguns julgados
do STF apontando em sentido contrário, mas sem uma posição muito clara do
Plenário da Corte:

(…) A jurisprudência do STF já assentou que o benefício
previdenciário recebido de boa-fé pelo segurado, em decorrência de decisão
judicial, não está sujeito à repetição de indébito, em razão de seu caráter
alimentar. Precedentes. 2. Decisão judicial que reconhece a impossibilidade de
descontos dos valores indevidamente recebidos pelo segurado não implica
declaração de inconstitucionalidade do art. 115 da Lei nº 8.213/1991. (…)

STF. 1ª Turma. ARE 734242 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso,
julgado em 04/08/2015.

 

Existem, inclusive, alguns julgados afirmando que não cabe ao STF analisar
o tema, sob o argumento de que a matéria seria infraconstitucional: RE 798793
AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 10/02/2015.

Nesse sentido, é importante ainda destacar que o STF, ao julgar o Tema
799 da Repercussão Geral (ARE 722.421/MG, j. em 19/3/2015), firmou
expressamente que: “A questão acerca da devolução de valores recebidos em
virtude de concessão de antecipação de tutela posteriormente revogada tem
natureza infraconstitucional e a ela atribuem-se os efeitos da ausência de
repercussão geral”.

No mesmo caminho: RE 1.202.649 AgR (relator Ministro Celso de Mello,
Segunda Turma, j. em 20/12/2019) e RE 1.152.302 AgR (relator Ministro Marco
Aurélio, Primeira Turma, j. em 28/5/2019).

 

Diante desse cenário, o STJ resolveu se
reunir novamente para deliberar sobre o tema. O que ficou decidido? O STJ
continua entendendo que tem que devolver?

SIM.

A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o
autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou
assistenciais recebidos.

O CPC/2015 prevê que a efetivação da tutela provisória corre
por conta do exequente, e a sua eventual reforma restitui as partes ao estado
anterior à concessão, o que obriga o exequente a ressarcir eventuais prejuízos
sofridos pelo executado. Nesse sentido:

Art. 302. Independentemente da
reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação
da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

I – a sentença lhe for desfavorável;

(…)

III – ocorrer a cessação da eficácia
da medida em qualquer hipótese legal;

(…)

Parágrafo único. A indenização será
liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.

 

Art. 520. O cumprimento provisório da
sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado
da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:

I – corre por iniciativa e
responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a
reparar os danos que o executado haja sofrido;

II – fica sem efeito, sobrevindo
decisão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as
partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos;

(…)

§ 5º Ao cumprimento provisório de
sentença que reconheça obrigação de fazer, de não fazer ou de dar coisa
aplica-se, no que couber, o disposto neste Capítulo.

 

Mas e o STF…?

O Min. Relator Og Fernandes assim explicou:

“(…) o fato de o STF
ter alguns precedentes contrários ao entendimento do Tema Repetitivo 692/STJ
não invalida o repetitivo. Explico. O STF adota o posicionamento referido em
algumas ações originárias propostas (na maioria, mandados de segurança) em seu
âmbito. Porém, não o faz com caráter de guardião da Constituição Federal, mas
sim na análise concreta das ações originárias. A maioria dos precedentes do STF
não diz respeito a lides previdenciárias e, além disso, são todos anteriores às
alterações inseridas no art. 115, inc. II, da Lei n. 8.213/1991. Na verdade,
atualmente o STF vem entendendo pela inexistência de repercussão geral nessa
questão, por se tratar de matéria infraconstitucional, como se verá mais
adiante.

O que se discute no caso
em tela é a interpretação de artigo de lei federal, mais especificamente, o
art. 115, inc. II, da Lei n. 8.213/1991 e vários dispositivos do CPC/2015.
Assim, vale o entendimento do STJ sobre a matéria, pois, segundo o art. 105 da
Carta Magna, é esta Corte a responsável pela uniformização da interpretação da
legislação infraconstitucional no país. É por isso que o STF veda, de forma
reiterada, o cabimento de recurso extraordinário para apreciar matéria
infraconstitucional, a exemplo do enunciado nas Súmulas n. 636 (“Não cabe
recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da
legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a
normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.”), e 638 (“A
controvérsia sobre a incidência, ou não, de correção monetária em operações de
crédito rural é de natureza infraconstitucional, não viabilizando recurso
extraordinário.”) da Corte Suprema.

(…)

Em suma, a Suprema Corte
entende que a questão não é constitucional e deve, portanto, ser deslindada nos
limites da legislação infraconstitucional, o que foi feito com bastante clareza
pelo legislador ao trazer a nova redação do art. 115, inc. II, da Lei n.
8.213/1991.”

 

Voltando ao exemplo:

Em nosso exemplo, com a revogação
da tutela provisória de urgência (“tutela antecipada”), João terá que devolver
R$ 10 mil ao INSS, considerando que foi esse o valor que ele recebeu por força
da decisão judicial modificada.

 

INSS começou a descontar esse
valor administrativamente

O INSS passou a descontar, na via
administrativa, os valores desembolsados durante a vigência da “tutela
antecipada”.

Assim, João, que antes recebia R$
3 mil por mês, passou a ver em seu contracheque apenas R$ 2.100,00. Aparecia um
desconto mensal de R$ 900,00 a título de restituição.

João procurou o INSS e a
autarquia argumentou que está autorizada a fazer isso com base no art. 115, II,
da Lei nº 8.213/91.

 

O argumento do INSS está correto?
O INSS pode descontar, na via administrativa, valores recebidos por força de
decisão judicial precária posteriormente cassada em decorrência da improcedência
do pedido? Aplica-se o art. 115, II, neste caso?

Antes da Lei 13.846/2019: havia certa polêmica.

O art. 115, II, da Lei nº 8.213/91 não autorizava o INSS a
descontar, na via administrativa, valores concedidos a título de tutela
antecipada (tutela provisória de urgência), posteriormente cassada com a
improcedência do pedido.

STJ. 1ª Turma. REsp 1.338.912-SE, Rel. Min. Benedito Gonçalves,
julgado em 23/5/2017 (Info 605).

 

Nesse julgado (REsp 1.338.912-SE),
o STJ afirmou que o inciso II do art. 115 aplicava-se apenas para a recuperação
de pagamentos feitos pelo INSS na via administrativa, não podendo ser utilizado
caso o pagamento tenha sido determinado por decisão judicial. Se o valor pago
ao segurado ou beneficiário tivesse ocorrido por força de decisão judicial, o
STJ afirmava que o INSS deveria se valer dos instrumentos judiciais para ter de
volta essa quantia. Assim, o art. 115, II, não autorizava a Administração
Previdenciária a cobrar, administrativamente, valores pagos a título de tutela
judicial, sob pena de afronta ao princípio da segurança jurídica.

 

Depois da Lei 13.846/2019: SIM (não há mais
dúvidas)

O inciso II do art. 115 da Lei nº
8.213/91 foi alterado e passou a prever expressamente essa possibilidade. Veja
novamente a redação do dispositivo:

Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios:

(…)

II – pagamento administrativo ou judicial de benefício
previdenciário ou assistencial indevido, ou além do devido, inclusive na
hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, em valor
que não exceda 30% (trinta por cento) da sua importância, nos termos do
regulamento;

 

Em suma:

A reforma da decisão que antecipa
os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos
benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por
meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância
de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago.

STJ.
1ª Seção. Pet 12.482-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 11/05/2022 (Recurso
Repetitivo – Tema 692) (Info 737).

 

DOD Plus – informações complementares

Alteração
no § 3º do art. 115

A Lei nº
13.846/2019 altera a redação do § 3º do art. 115 para dizer que, em caso de
dívida decorrente de revogação da tutela provisória, é possível que o INSS faça
a inscrição deste débito em dívida ativa:

LEI 8.213/91

Antes da Lei 13.846/2019

Depois da Lei
13.846/2019 (atualmente)

Art. 115 (…)

§ 3º Serão inscritos em dívida
ativa pela Procuradoria-Geral Federal os créditos constituídos pelo INSS em
razão de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou além
do devido, hipótese em que se aplica o disposto na Lei nº 6.830, de 22 de setembro
de 1980, para a execução judicial. (Incluído pela Lei nº 13.494/2017)

 

Art. 115 (…)

§ 3º Serão inscritos em dívida
ativa pela Procuradoria-Geral Federal os créditos constituídos pelo INSS em
decorrência de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou
além do devido, inclusive
na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial
,
nos termos da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, para a execução
judicial.

 

Terceiro
beneficiado pode ser também inscrito como devedor na dívida ativa (novos § 4º e
5º ao art. 115)

A Lei nº
13.846/2019 inseriu os §§ 4º e 5º ao art. 115 com a seguinte redação:

§
4º Será objeto de inscrição em dívida ativa, para os fins do disposto no § 3º
deste artigo, em conjunto ou separadamente, o terceiro beneficiado que sabia ou
deveria saber da origem do benefício pago indevidamente em razão de fraude,
de dolo ou de coação, desde que devidamente identificado em
procedimento administrativo de responsabilização.

§ 5º O
procedimento de que trata o § 4º deste artigo será disciplinado em regulamento,
nos termos da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e no art. 27 do
Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de
setembro de 1942.

Artigo Original em Dizer o Direito

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