Imagine a seguinte situação
adaptada:
Marina adquiriu um suco de
caixinha industrializado no supermercado e, depois de tomar o primeiro gole,
percebeu que o produto estava contaminado com um corpo estranho (um “mofo”
verde musgo).
A consumidora ajuizou ação de
indenização por danos morais contra a fabricante do suco e o supermercado.
O supermercado resolveu fazer um
acordo com a consumidora e pagou R$ 4 mil à autora.
A fabricante, por sua vez, não
participou da transação.
O juiz homologou a transação e
extinguiu o processo com relação ao supermercado.
Por outro lado, determinou que o
processo deveria prosseguir no que tange à fabricante.
A fabricante não concordou e
interpôs agravo de instrumento alegando que:
– a responsabilidade, no presente
caso, é solidária;
– logo, mesmo sem participar do
acordo, a transação firmada abrangeria também a fabricante;
– diante disso, o juiz deveria
ter extinguido o processo para ambos os réus.
A fabricante invocou, como fundamento legal, o art. 844, §
3º do Código Civil:
Art. 844. A transação não aproveita,
nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa
indivisível.
(…)
§ 3º Se entre um dos devedores
solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores.
O TJ/RJ negou provimento ao
agravo.
A fabricante interpôs, então,
recurso especial.
O STJ concordou com a tese
da fabricante?
NÃO. Vamos entender com calma.
Vício
do produto x Fato do produto
VÍCIO |
DEFEITO (FATO DO |
Vício é a inadequação do produto ou Restringe-se ao próprio produto e não |
O art. 12, § 1º do CDC afirma que |
Ex: Paulo compra um Playstation e ele |
Ex: Paulo compra um Playstation, ele |
Prazo para reclamar sobre os vícios é • 30 dias para serviços e produtos • 90 dias para serviços e produtos |
O prazo para ações de reparação por |
Art. 18. Os fornecedores de produtos |
Art. 12. O fabricante, o produtor, o |
Em caso de vício do produto, o |
No caso de fato |
No caso da responsabilidade por |
O art. 12 afirma que responsabilidade Ocorre que, ao tratar da |
Corpo estranho em produto
alimentício
O caso trata de ingestão parcial
de produto contaminado, tendo em vista que a parte consumiu parte de um suco
contendo um corpo estranho em seu interior.
O STJ entende que:
A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu
interior corpo estranho expõe o consumidor à risco concreto de lesão à sua
saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo. Logo, isso
enseja o direito de o consumidor ser indenizado por danos morais, considerando
que há ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio
da dignidade da pessoa humana.
A simples comercialização de produto contendo corpo estranho
possui as mesmas consequências negativas à saúde e à integridade física do
consumidor que sua ingestão propriamente dita.
Existe, no caso, dano moral in re ipsa porque a presença
de corpo estranho em alimento industrializado excede aos riscos comumente
esperados pelo consumidor em relação a esse tipo de produto, caracterizando-se
a situação como um defeito do produto, a permitir a responsabilização do fornecedor.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.899.304/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 25/08/2021.
A existência de corpo
estranho em produto alimentício configura vício do produto ou fato do produto?
Fato do produto.
Para o STJ, a existência de corpo
estranho em produtos alimentícios, como no caso, configura hipótese de fato do
produto (defeito), previsto nos arts. 12 e 13 do Código de Defesa do
Consumidor, não se tratando de vício do produto (art. 18).
O que isso significa no que
tange ao comerciante (em nosso exemplo, o supermercado)?
Significa que a sua
responsabilidade não é solidária, mas sim subsidiária.
Logo, não é correto o argumento da fabricante de que a
responsabilidade do supermercado seria solidária. Não era. Como a responsabilidade
do supermercado não era solidária, não se aplica, no presente caso, o § 3º do
art. 844 do Código Civil:
Art. 844. A transação não aproveita,
nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa
indivisível.
(…)
§ 3º Se entre um dos devedores
solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores.
Em suma:
A inexistência de responsabilidade solidária por fato
do produto entre os fornecedores da cadeia de consumo impede a extensão do
acordo feito por um réu em benefício do outro.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.968.143-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em
08/02/2022 (Info 724).