A situação concreta, com adaptações,
foi a seguinte:

O Município de Água Doce do
Maranhão, no interior do Estado do Maranhão, por intermédio do seu Prefeito
José, celebrou convênio com o Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Por força do convênio, o
Ministério transferiu ao Município R$ 100 mil, que deveriam ser utilizados para
a compra e distribuição de insumos para os produtores rurais da localidade.

O Ministério repassou a quantia
ajustada, mas o Prefeito, ao final do prazo do convênio, não prestou contas de
que utilizou o dinheiro para a aquisição e entrega dos insumos aos produtores
rurais.

Encerrado o mandato de José,
Antônio assumiu como novo Prefeito.

Ao
tomar conhecimento do fato e com medo de ficar com restrições de crédito junto
à União, Antônio ordenou que o Procurador do Município preparasse e ajuizasse
ação de improbidade contra o ex-Prefeito José.

Assim foi feito. O Município de Água Doce do Maranhão
ajuizou ação de improbidade administrativa contra José, com fundamento no art.
11, VI, da Lei nº 8.429/92:

Art. 11. Constitui ato de improbidade
administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação
ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de
legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

(…)

VI – deixar de prestar contas quando
esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com
vistas a ocultar irregularidades;

 

A ação foi proposta na Justiça Estadual. O Juiz de Direito,
contudo, entendeu que seria incompetente para julgar a demanda. O argumento foi
o de que, como se trata de convênio com órgão federal, haveria necessidade de
prestação de contas junto ao TCU, nos termos do art. 71, VI, da CF/88:

Art. 71. O controle externo, a cargo
do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da
União, ao qual compete:

(…)

VI – fiscalizar a aplicação de
quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou
outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

 

Logo, o magistrado estadual
declinou da competência para Justiça Federal.

O Juiz Federal, entretanto,
considerou que a situação não se amoldava em nenhuma das hipóteses de
competência da Justiça Federal previstas no art. 109 da CF/88.

Diante disso, suscitou conflito
negativo de competência.

 

De quem é a competência
para julgar este conflito de competência?

Do STJ, nos termos do art. 105, I, “d”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal
de Justiça:

I – processar e julgar,
originariamente:

(…)

d) os conflitos de competência entre
quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, “o”, bem como entre
tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais
diversos;

 

O que decidiu o STJ? De
quem é a competência para julgar esta ação de improbidade: da Justiça Estadual
ou da Justiça Federal?

Da Justiça Estadual.

Em regra, compete à
Justiça Estadual (e não à Justiça Federal) processar e julgar ação civil
pública de improbidade administrativa na qual se apure irregularidades na
prestação de contas, por ex-prefeito, relacionadas a verbas federais
transferidas mediante convênio e incorporadas ao patrimônio municipal.

 

Exceção: será de competência da Justiça Federal se a
União, autarquia federal, fundação federal ou empresa pública federal
manifestar expressamente interesse de intervir na causa porque, neste caso, a
situação se amoldará no art. 109, I, da CF/88:

Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:

I – as causas em que a União, entidade autárquica ou
empresa pública federal forem interessadas
na condição de autoras, rés,
assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e
as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

 

Súmulas 208 e 209 do STJ

O STJ possui dois enunciados
muito conhecidos. Vamos relembrá-los:

Súmula 208-STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar
prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante
órgão federal.

Súmula 209-STJ: Compete à Justiça Estadual processar e julgar
prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.

 

Esses enunciados foram editados pela 3ª Seção do STJ, que
julga processos e recursos criminais. Desse modo, tais súmulas foram aprovadas,
originalmente, para resolver questões relacionadas com a competência em matéria
penal. Nos processos criminais, para que a competência seja da Justiça Federal,
basta que exista interesse da União, de suas autarquias ou empresas públicas.
Veja:

Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:

(…)

IV – os crimes políticos e as
infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da
União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as
contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça
Eleitoral;

 

Vamos
comparar:

Competência penal da JF

Competência cível da JF

Art.
109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(…)

IV
– os crimes
políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas
entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e
ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

Art.
109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I
as causas em
que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem
interessadas
na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes,
exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça
Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

Em
relação às matérias penais, o art. 109 estabelece critérios mais amplos na fixação da
competência da Justiça Federal do que quanto às ações cíveis. Isso porque no
âmbito criminal, para que a competência seja federal, basta que exista interesse da União, entidades
autárquicas e empresas públicas.

Em
matéria cível, a Justiça Federal só será competente se a União possuir
interesse que lhe permita atuar como autora, ré, assistente ou oponente.
Logo, se a União, entidade autárquica ou empresa pública não figurar como
parte no processo cível, a competência não será da Justiça Federal.

 

Não se está afirmando que as
súmulas 208 e 209 do STJ não possam ser aplicadas como critérios para definição
de competência em matéria cível. Existem inúmeros precedentes do STJ que
utilizam esses enunciados em processos cíveis, inclusive em ações de
improbidade administrativa. Nesse sentido: STJ. 2ª Turma. REsp 1391212/PE, Rel.
Min. Humberto Martins, julgado em 02/09/2014.

O que se está explicando é que as
referidas súmulas, em especial o enunciado 208, não podem ser aplicadas de
forma absoluta nos processos cíveis. Para a definição da competência cível, o
principal será saber se a União, suas entidades autárquicas ou empresas
públicas estão intervindo no processo ou não.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
AJUIZADA POR MUNICÍPIO CONTRA EX-PREFEITO. CONVÊNIO ENTRE MUNICÍPIO E ENTE
FEDERAL. UTILIZAÇÃO IRREGULAR DE RECURSOS PÚBLICOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
ESTADUAL.

1. Trata-se de ação de improbidade administrativa proposta por
Município contra ex-prefeito, por suposto desvio de verba – já incorporada pela
Municipalidade – sujeita à prestação de contas perante órgão federal, no caso,
a FUNASA (fundação pública vinculada ao Ministério da Saúde).

2. Nos termos do inciso I, do art. 109, da CRFB/88, a
competência cível da Justiça Federal define-se pela natureza das pessoas
envolvidas no processo – rationae
personae
–, sendo desnecessário perquirir a natureza da causa (análise do
pedido ou causa de pedir), excepcionando-se apenas as causas de falência, de
acidente do trabalho e as sujeitas às Justiças Eleitoral e do Trabalho.

3. Malgrado a demanda tenha como causa de pedir – a ausência de
prestação de contas (por parte do ex prefeito) de verbas recebidas em
decorrência de convênio firmado com órgão federal – situação que, nos termos da
Súmula 208/STJ, fixaria a competência na Justiça Federal (já que o ex gestor
teria que prestar contas perante o referido órgão federal), não há, no polo
passivo da ação, quaisquer dos entes mencionados no inciso I do art. 109, da
CF. Assim, não há que se falar em competência da Justiça Federal.

4. Corrobora o raciocínio, o entendimento sedimentado na Súmula
209/STJ, no sentido de fixar na Justiça Estadual a competência para o processo
e julgamento das causas em que as verbas recebidas pelo Município, em
decorrência de irregularidades ocorridas no Convênio firmado com a União, já
tenham sido incorporadas à Municipalidade – hipótese dos autos.

5. Conflito de competência conhecido para declarar competente o
Juízo de Direito de Marcelância/MT, o suscitado.

STJ. 1ª Seção. CC 100.507/MT, Rel. Min. Castro Meira, julgado em
11/03/2009.

 

(…) 2. Deve-se observar uma distinção (distinguishing) na
aplicação das Súmulas 208 e 209 do STJ, no âmbito cível. Isso porque tais
enunciados provêm da Terceira Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses
de fixação da competência em matéria penal, em que basta o interesse da União
ou de suas autarquias para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos
termos do inciso IV do art. 109 da CF.

3. A competência da Justiça Federal, em matéria cível, é aquela
prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, que tem por base critério
objetivo, sendo fixada tão só em razão dos figurantes da relação processual,
prescindindo da análise da matéria discutida na lide.

4. Assim, a ação de improbidade movida contra Prefeito, fundada
em uso irregular de recursos advindos de convênio celebrado pelo Município com
a FUNASA, com dano ao erário, não autoriza por si só o deslocamento do feito
para a Justiça Federal.

5. No caso, a presença da autarquia na condição de assistente
simples (art. 50 do CPC) já admitida no feito – em razão do interesse jurídico
na execução do convênio celebrado – firma a competência da Justiça Federal, nos
termos do mencionado art. 109, I, da CF. (…)

STJ. 2ª Turma. REsp 1325491/BA, Rel. Min. Og Fernandes, julgado
em 05/06/2014.

 

Veja as brilhantes palavras do
Min. Mauro Campbell Marques:

“O art. 109, I, da Constituição
Federal prevê, de maneira geral, a competência cível da Justiça Federal,
delimitada objetivamente em razão da efetiva presença da União, entidade
autárquica ou empresa pública federal, na condição de autoras, rés, assistentes
ou oponentes na relação processual. Estabelece, portanto, competência absoluta
em razão da pessoa (ratione personae), configurada pela presença dos entes
elencados no dispositivo constitucional na relação processual,
independentemente da natureza da relação jurídica litigiosa.

Por outro lado, o art. 109, VI,
da Constituição Federal dispõe sobre a competência penal da Justiça Federal,
especificamente para os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou
interesse da União, entidades autárquicas ou empresas públicas. Assim, para
reconhecer a competência, em regra, bastaria o simples interesse da União,
inexistindo a necessidade da efetiva presença em qualquer dos polos da demanda.

Nesse contexto, a aplicação dos
referidos enunciados sumulares, em processos de natureza cível, tem sido
mitigada no âmbito deste Tribunal Superior. A Segunda Turma afirmou a
necessidade de uma distinção (distinguishing) na aplicação das Súmulas
208 e 209 do STJ, no âmbito cível, pois tais enunciados provêm da Terceira
Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência em
matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias para
deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art.
109 da CF. Logo adiante concluiu que a competência da Justiça Federal, em
matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, que
tem por base critério objetivo, sendo fixada tão só em razão dos figurantes da
relação processual, prescindindo da análise da matéria discutida na lide (REsp
1.325.491/BA, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 05/06/2014,
DJe 25/06/2014).

Assim, nas ações de ressarcimento
ao erário e improbidade administrativa ajuizadas em face de eventuais
irregularidades praticadas na utilização ou prestação de contas de valores
decorrentes de convênio federal, o simples fato das verbas estarem sujeitas à
prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União, por si só, não
justifica a competência da Justiça Federal.

O Supremo Tribunal Federal já
afirmou que o fato dos valores envolvidos transferidos pela União para os
demais entes federativos estarem eventualmente sujeitos à fiscalização do
Tribunal de Contas da União não é capaz de alterar a competência, pois a
competência cível da Justiça Federal exige o efetivo cumprimento da regra
prevista no art. 109, I, da Constituição Federal.

Igualmente, a mera transferência
e incorporação ao patrimônio municipal de verba desviada, no âmbito civil, não
pode impor de maneira absoluta a competência da Justiça Estadual. Se houver
manifestação de interesse jurídico por ente federal que justifique a presença
no processo, (v.g. União ou Ministério Público Federal) regularmente
reconhecido pelo Juízo Federal nos termos da Súmula 150/STJ, a competência para
processar e julgar a ação civil de improbidade administrativa será da Justiça
Federal.

Em síntese, é possível afirmar
que a competência cível da Justiça Federal é definida em razão da presença das
pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da CF na relação
processual, seja como autora, ré, assistente ou oponente e não em razão da
natureza da verba federal sujeita à fiscalização da Corte de Contas da União.

No caso, não figura em nenhum dos
polos da relação processual ente federal indicado no art. 109, I, da
Constituição Federal, o que afasta a competência da Justiça Federal para
processar e julgar a referida ação. Ademais, não existe nenhuma manifestação de
interesse em integrar o processo por parte de ente federal e o Juízo Federal
consignou que o interesse que prevalece restringe-se à órbita do Município
autor, o que atrai a competência da Justiça Estadual para processar e julgar a
demanda.”

 

Voltando ao caso concreto:

Na ação de improbidade ajuizada
pelo Município, a União não manifestou interesse de intervir na causa. Assim, a
despeito da Súmula 208 do STJ, a competência será da Justiça Estadual porque a
competência absoluta enunciada no art. 109, I, da CF/88 exige, de forma clara e
objetiva, a presença de uma entidade federal na lide.

A situação seria diferente se,
por exemplo, a União houvesse pedido para atuar como assistente do
Município-autor. Neste caso, a competência para jugar a ação seria da Justiça
Federal.

 

Em suma:

Nas ações de improbidade administrativa, a
competência da Justiça Federal é definida em razão da presença das pessoas
jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da Constituição Federal
na relação processual, e não em razão da natureza da verba federal sujeita à
fiscalização da Tribunal de Contas da União.

STJ. 1ª Seção.
CC 174.764-MA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 09/02/2022 (Info
724).

Artigo Original em Dizer o Direito

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