Por Cleber Masson* e Márcio Cavalcante**

Foi recentemente publicada a Lei
nº 13.330/2016, alterando o Código Penal para tipificar, de forma mais gravosa,
os crimes de FURTO e de RECEPTAÇÃO de semovente domesticável de produção.
Em outras palavras, a Lei nº
13.330/2016 aumentou a pena para quem furtar ou praticar receptação de “semovente
domesticável de produção”.
Veremos abaixo algumas impressões
iniciais sobre as principais mudanças operadas pela nova Lei.
NOÇÕES GERAIS

Antes de tudo, a primeira
pergunta a ser respondida é a seguinte: o que é um “semovente”?

No direito, as coisas podem ser
divididas em:
a) BENS IMÓVEIS: são aqueles que
não podem ser transportados de um lugar para outro sem que percam a sua substância
ou a sua destinação econômico-social. Ex: uma casa.
b) BENS MÓVEIS: são aqueles que
podem ser movimentados de um lugar para outro sem que se altere a natureza ou a
sua destinação econômico-social. Ex: um carro, um celular etc.
c) BENS SEMOVENTES: são aqueles
que possuem movimento próprio, ou seja, podem movimentar-se sozinhos.
Obs: o art. 82 do Código Civil
traz um conceito genérico de bens móveis que acaba abrangendo também os
semoventes. No entanto, é importante saber que existe esta diferença: bens
móveis = podem ser transportados / bens semoventes = podem se locomover sozinhos
(por movimento próprio).
Existem duas “coisas” que
podem se movimentar sozinhas: os homens e os animais. Ocorre que o homem não é coisa,
e sim pessoa. Logo, para o Direito a palavra semovente é utilizada, atualmente,
como sinônimo de animal. Como curiosidade, em um triste passado, na época da
escravatura, os escravos eram considerados “bens semoventes”, em
virtude de serem classificados como “coisas” (e não pessoas).
Obs: os insetos e
micro-organismos também podem se movimentar sozinhos, mas não se enquadram no
conceito de semoventes por não serem suscetíveis de apreciação econômica.
Em suma, guarde o que prevalece: semovente = animal.
Espécies de semoventes:

Existem três espécies de
semoventes:
• Animais selvagens.

• Animais domesticados (ou
domesticáveis).

• Animais domésticos.
Semovente domesticável de
produção

A Lei nº 13.330/2016 altera as
penas do furto e da receptação envolvendo “semovente domesticável de
produção”.
Semovente domesticável de
produção é o animal que foi domesticado ou que pode ser domesticado para ser
utilizado como rebanho e/ou produção. Em regra, incluem-se neste conceito os bovinos,
ovinos, suínos, caprinos etc.
O legislador, contudo, não fez
restrições. Desta forma, ingressam no conceito de semovente domesticável de
produção animais diversos, a exemplo de cães, gatos e aves, desde que contenham
a finalidade de produção, é dizer, sejam idôneos a gerar algum retorno
econômico ao seu titular, como se dá na criação de filhotes destinados à venda.
Não ingressam na nova proteção do
Direito Penal:

• os animais selvagens. Exs:
leão, tigre, girafa, elefante etc.

• os animais domésticos que não
sejam voltados à produção.
Com essas considerações gerais, passamos
a analisar as alterações em cada um dos delitos.
FURTO

Estrutura do Furto

O crime de furto encontra-se tipificado
no art. 155 do CP, que contava com cinco parágrafos.

Vejamos o que dispõe cada um deles:

• Caput: furto simples.

• § 1º: causa de aumento de pena
para os casos em que o furto é praticado durante o repouso noturno.

• § 2º: causa de diminuição de
pena, chamada pela doutrina de “furto privilegiado”.

• § 3º: a energia elétrica ou
qualquer outra que tenha valor econômico é equiparada à coisa móvel (norma
penal explicativa).

• § 4º: qualificadoras ligadas aos
meios de execução.

• § 5º: qualificadora na hipótese
da subtração de veículo automotor que venha a ser transportado para outro
Estado ou para o exterior.
Nova qualificadora: furto de
semoventes domesticáveis de produção

A Lei nº 13.330/2016 acrescentou
o § 6º ao art. 155 do Código Penal prevendo uma nova QUALIFICADORA para o crime
de furto. Veja a redação do parágrafo inserido:
§ 6º A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5
(cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda
que abatido ou dividido em partes no local da subtração.

Desse modo, se o agente subtrai
semovente domesticável de produção (ex: um boi, uma galinha, um porco, uma
cabra etc.), ele não mais responderá pela pena do caput do art. 155 do CP e sim por este § 6º.
Abigeato

O § 6º do art. 155 pune mais
gravosamente o abigeato, que é o nome dado pela doutrina para o furto de gado.
Importante destacar que o abigeato
abrange não apenas o furto de bovinos, mas também de outros animais
domesticáveis, como caprinos, suínos etc.
O agente que pratica abigeato é
chamado de abigeator.
Não se pode confundir o abigeato
com o abacto, que consiste no roubo de bovinos, ou seja, na subtração mediante
violência.
Animal abatido ou dividido em
partes no local da subtração

Vale ressaltar que haverá a
incidência da referida qualificadora ainda que o larápio mate o semovente ou
venha a dividi-lo em partes no local da subtração. Destarte, pouco importa seja
subtraído o animal vivo ou morto, integralmente ou somente uma das suas partes.
Em qualquer situação terá incidência a figura qualificada prevista no art. 155,
§ 6º, do CP.
Se o agente subtrai uma peça de
picanha de uma residência, de um supermercado ou mesmo de um açougue, ela
responderá pela nova qualificadora do § 6º do art. 155?

Não. O § 6º aplica-se para o caso
de furto de semovente “dividido em partes no local da subtração”. Essa divisão
deve ser efetuada pelo agente no local em que furto é praticado.
Caso o animal tenha sido legitimamente
dividido pelo seu proprietário e suas diversas partes tenham seguido destinos
diferentes, não se pode dizer que ainda exista aí um semovente. Uma peça de
picanha, de costela, de maminha etc., isoladamente considerada, não pode ser
equiparada a um semovente.
Suspensão condicional do processo

Uma das consequências mais
gravosas decorrentes da Lei nº 13.330/2016 é que agora o agente que subtrair um
boi, uma cabra, um bode ou mesmo uma galinha, desde que o animal seja dotado de
relevante valor econômico, não terá mais direito ao benefício da suspensão
condicional do processo, previsto no art. 89 da Lei nº 9.099/95, pois a pena
mínima cominada é de 2 anos. Cuida-se de crime de elevado potencial ofensivo.
O § 1º do art. 155 do CP prevê
que a pena do furto deve ser aumentada em um terço, se o crime é praticado
durante o repouso noturno. Essa causa de aumento de pena do § 1º, além de se
aplicar para os casos de furto simples (caput), pode também incidir no caso de
furto qualificado de semoventes (§ 5º)? Se o agente, durante o repouso noturno,
furta um semovente domesticável de produção, deverá ter sua pena aumentada em um
terço?

Para o STJ, a resposta é
positiva, pois a causa de aumento de pena prevista no § 1º pode ser aplicada
tanto para os casos de furto simples (caput)
como para as hipóteses de furto qualificado.
Não existe nenhuma
incompatibilidade entre a majorante prevista no § 1º e as qualificadoras. São
circunstâncias diversas, que incidem em momentos diferentes da aplicação da
pena.
Assim, é possível que o agente
seja condenado por furto qualificado (§§ 4º ou 6º do art. 155) e, na terceira
fase da dosimetria, o juiz aumente a pena em um terço se a subtração ocorreu
durante o repouso noturno.
Nesse sentido: STJ – 5ª Turma. AgRg
no AREsp 741.482/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em
08/09/2015; STJ. 6ª Turma. HC
306.450-SP, Rel.
Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 4/12/2014
(Info 554).
O § 2º do art. 155 do CP prevê a
diminuição da pena de um a dois terços para os casos de furto de pequeno valor.
É o chamado “furto privilegiado”. É possível aplicar a redução do § 2º do art.
155 para o condenado pelo furto qualificado de semoventes (§ 6º)?

SIM. É possível desde que estejam
preenchidos os requisitos do § 2º (primariedade e pequeno valor da coisa). Isso
porque a qualificadora do § 6º é de natureza objetiva. Logo, não há
incompatibilidade em se reconhecer, neste caso, o chamado “furto privilegiado-qualificado”,
também conhecido como “furto híbrido”.
Aplica-se à presente situação o
seguinte enunciado do STJ:
Súmula 511-STJ: É possível
o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do CP nos casos de
crime de furto qualificado, se estiverem presentes a primariedade do agente, o
pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem objetiva.
O que acontece se o agente
subtrai semovente domesticável de produção praticando, ainda, alguma das
condutas previstas no § 4º do art. 155 do CP? É possível a cumulação dos §§ 4º
e 6º do art. 155?

SIM. É o que acontece, por
exemplo, no caso do agente que, mediante o rompimento cerca do curral, furta uma
vaca (art. 155, § 4º, I c/c § 6º).
Nesta hipótese teremos um furto
duplamente qualificado.
A pena em abstrato será a
prevista no § 4º do art. 155 (de dois a oito anos) e a qualificadora descrita
no § 6º será utilizada pelo magistrado como circunstância judicial desfavorável
na primeira fase da dosimetria da pena (art. 59 do CP).
É possível aplicar o princípio da
insignificância para o furto de semovente domesticável de produção mesmo agora
esta conduta sendo considerada como furto qualificado (§ 6º do art. 155)?

SIM. Em regra, o STJ não aplica o
princípio da insignificância para o furto qualificado. É o caso, por exemplo,
do art. 155, § 4º, I do CP (furto com rompimento de obstáculo). Afirma-se que o
rompimento de obstáculo para a prática do crime de furto denota a maior
reprovabilidade da conduta do agente e afasta, por conseguinte, a incidência do
princípio da insignificância (STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 746.011/MT, Rel.
Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 05/11/2015).
Esta justificativa do STJ,
contudo, não se aplica para a nova qualificadora do § 6º do art. 155.
A qualificadora do § 6º não
existe porque o modo de execução do crime seja mais grave nestes casos. A nova
previsão foi inserida unicamente com o objetivo de conferir “maior proteção”
penal para um determinado bem jurídico (animais destinados à produção), não
havendo, porém, maior reprovabilidade nesta conduta.
Assim, o simples fato de se
furtar um semovente domesticável de produção não traz nenhuma circunstância
especial ou mais gravosa que determine, por si só, a proibição de se aplicar o
princípio da insignificância.
Para que incida o princípio da
insignificância, é necessário que estejam presentes os seguintes requisitos
construídos pela jurisprudência do STF/STJ:
a) mínima ofensividade da
conduta;
b) nenhuma periculosidade social
da ação;
c) reduzido grau de
reprovabilidade do comportamento; e
d) inexpressividade da lesão
jurídica provocada.
A conduta descrita no § 6º do
art. 155, a depender do caso concreto, pode ser compatível com os requisitos
acima listados, não havendo proibição, em abstrato, para a aplicação do
referido princípio.
Desse modo, se um agente,
primário, com bons antecedentes, furta, com o objetivo de alimentar-se, uma
galinha de uma enorme granja, por exemplo, não vemos dúvidas em se aplicar o
princípio da insignificância. Inúmeros outros exemplos podem ser imaginados.
RECEPTAÇÃO DE ANIMAL

O Código Penal prevê o delito de
receptação no art. 180:

Art. 180. Adquirir, receber,
transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe
ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira,
receba ou oculte:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e
multa.

A receptação qualificada, por sua vez, encontra-se
tipificada no § 1º do art. 180:

Receptação qualificada

§ 1º – Adquirir,
receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar,
remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito
próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que
deve saber ser produto de crime:

Pena – reclusão, de três a oito anos, e
multa.

A Lei º 13.330/2016 acrescenta o
art. 180-A ao Código Penal, criando uma nova espécie de receptação envolvendo
animais. Confira:
Receptação de animal

Art.
180-A. Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou
vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente
domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve
saber ser produto de crime:
Pena
– reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Detalhando o art. 180-A do CP

NÚCLEOS DO TIPO

ELEMENTO

SUBJETIVO ESPECIAL

OBJETO MATERIAL

ELEMENTO

SUBJETIVO GERAL

– Adquirir

– receber

– transportar

– conduzir

– ocultar

– ter em depósito

– vender

… com a finalidade de
produção ou de comercialização

semovente domesticável de
produção

(ainda que abatido ou
dividido em partes)

… que deve saber ser
produto de crime.

(segundo o STF/STJ, “deve
saber” abrange tanto o dolo eventual como o direto.)

Antes da Lei nº 13.330/2016, quem
praticava esta conduta respondia por qual crime?

Nos deparamos aqui com uma
inusitada situação decorrente da falta de cuidado e técnica do legislador ao
elaborar as leis.
O objetivo declarado da Lei nº
13.330/2016 foi o de aumentar a punição para quem pratica receptação de
“animais” (semoventes domesticáveis de produção). Contudo, ao inserir o art.
180-A do CP o que o legislador fez foi diminuir a pena para esta conduta.
Acompanhe o raciocínio.
Antes da Lei nº 13.330/2016, se o
indivíduo praticasse a conduta descrita atualmente no art. 180-A do CP, ele não
iria responder pela receptação simples do art. 180, caput, do CP, e sim pela
receptação qualificada prevista no § 1º do art. 180. Isso porque o art. 180-A
do CP afirma que a conduta do agente deve ter sido praticada “com a finalidade
de produção ou de comercialização”, exigência esta que não está descrita no caput do art. 180, mas que está prevista
no § 1º do art. 180 (“no exercício de atividade comercial ou industrial”).
Conduta: adquirir, receber, transportar, conduzir,
ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de
comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou
dividido em partes, que deve saber ser produto de crime.

Antes da Lei 13.330/2016

Depois da Lei 13.330/2016

Era punida no § 1º do art. 180, CP,

cuja pena é de 3 a 8 anos.

Passou a ser punida no art. 180-A, CP,

cuja pena é de 2 a 5 anos.

O legislador tentou tipificar, de
forma mais gravosa, o crime de RECEPTAÇÃO de semovente domesticável de produção,
mas o que conseguiu foi gerar uma novatio
legis in melius
que irá, inclusive, retroagir para beneficiar pessoas que
tenham sido condenadas pelo art. 180, § 1º do CP nos casos de receptação de
animais destinados a produção.
Vacatio legis

A Lei nº 13.330/2016 foi
publicada no dia 03/08/2016 e, por não prever vacatio legis, já se encontra em vigor.
* Cleber Masson

Promotor de Justiça em São Paulo.
Doutor e Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP. Professor de Direito Penal na Rede de Ensino LFG, na Escola
Superior do Ministério Público de São Paulo e na Pós Graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Palestrante e conferencista em todo o
Brasil.
** Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal TRF1. Foi Defensor Público, Promotor de Justiça
e Procurador do Estado. Professor e palestrante. Editor do site Dizer o
Direito.

Artigo Original em Dizer o Direito

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