A situação concreta, com adaptações e
notícias divulgadas na imprensa, foi a seguinte:

Mirtes trabalhava como empregada
doméstica no apartamento de Sarí, que ficava em um edifício no Recife (PE).

Determinado dia, Mirtes levou seu
filho Miguel (de 5 anos) para o trabalho. O menino ficava brincando no
apartamento enquanto a mãe fazia seu serviço.

Mirtes teve que levar o cachorro da
família para passear na área comum do prédio.

Miguel permaneceu no apartamento aos
cuidados da empregadora Sarí.

Ocorre que a criança começou a sentir
falta de mãe e resolveu ir à sua procura.

“Imagens do circuito interno de
segurança mostram que Miguel entrou no elevador pelo menos cinco vezes. Na
última, segundo a polícia, Sarí acionou a tecla do elevador que dá acesso à
cobertura. O elevador parou no nono andar. A criança passou por um corredor,
escalou uma parede, subiu em um condensador de ar e caiu de uma altura de 35
metros.”
(https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/02/15/caso-miguel-ministro-do-stj-nao-ve-abandono-de-incapaz-e-diz-que-morte-de-menino-nao-era-previsivel.ghtml)

O Ministério Público ajuizou ação penal em face de Sarí,
acusando-a da prática do crime de abandono de incapaz com resultado morte,
delito previsto no art. 133, § 2º, do Código Penal:

Art. 133. Abandonar pessoa que está
sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo,
incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena – detenção, de seis meses a três
anos.

(…)

§ 2º – Se resulta a morte:

Pena – reclusão, de quatro a doze
anos.

 

O delito do art. 133 do CP é crime
próprio, ou seja, somente pode ser praticado por uma pessoa que tenha o dever
de cuidado, guarda violência ou autoridade sobre a vítima.

Na denúncia, o MP afirmou que Sarí assumiu um dever de cuidar da
criança enquanto a mãe estava fora, enquadrando-se na posição de garante, nos
termos do art. 13, § 2º, “b”, do CP:

Relação de
causalidade

Art. 13. O resultado, de que depende a
existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se
causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

(…)

Relevância
da omissão

§ 2º A omissão é penalmente relevante
quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir
incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do resultado.

 

O MP afirmou, ainda, que a ré seria
garante porque a legislação (CF e ECA) determina a proteção das crianças e
adolescentes. Logo, ela tinha o dever legal de proteger a criança.

O juiz recebeu a denúncia.

Contra essa decisão, a defesa impetrou
habeas corpus no Tribunal de Justiça pedindo o trancamento da ação
penal.

O TJ/PE indeferiu a ordem, razão pela
qual a defesa interpôs recurso ordinário ao STJ.

A defesa pediu o trancamento da ação
penal.

 

O STJ acolheu o pedido da defesa para
trancamento da ação penal?

NÃO.

A 5ª Turma do STJ, por maioria de
votos, acompanhou a divergência inaugurada pelo Min. Joel Ilan Paciornik e
negou o pedido da defesa por entender que o trancamento da ação penal por meio
de habeas corpus é medida excepcional, admitida apenas quando manifestamente
clara a inépcia da inicial, o que não é o caso.

Inicialmente, o STJ afirmou que o
dever geral de proteção previsto no art. 227 da Constituição Federal e
reforçado no art. 70 da Lei nº 8.069/90 (ECA) se traduz numa norma de conteúdo
programático e não se amolda à alínea “a” do art. 13, § 2º, do Código Penal.
Esses dispositivos representam mais um objetivo mirado pelo constituinte, que
impõem principalmente ao Poder Público uma atuação orientada com a finalidade
de proteger os interesses das crianças e adolescentes, em virtude da sua
peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. Assim, esse dever geral não é
compatível com a especial relação disposta no delito de abandono de incapaz,
que exige um dever de assistência decorrente de cuidado, guarda, vigilância ou
autoridade entre os sujeitos ativo e passivo.

Apesar disso, mesmo não havendo uma obrigação
legal da ré de cuidar e proteger a criança, pode-se dizer que, em tese, ela, no
caso concreto, assumiu a esse compromisso, nos termos do art. 13, § 2º, “b”, do
CP.

 

Em uma análise preliminar, a ré
assumiu a responsabilidade de que não iria acontecer nada de errado com a
criança enquanto a mãe estava fora. Essa assunção do encargo foi voluntária e
consciente do dever assumido.

Da assunção decorreu uma expectativa,
uma confiança de que haveria por parte da garantidora a efetiva assistência ao
incapaz.

É verdade que a assunção da posição de
garantidor não é irrestrita. Assim, a garantidora não irá responder por
qualquer resultado relacionado com a vítima. Existem limites definidos pelo
contexto do caso concreto.

Nesse contexto, a defesa alegava que a
ré não poderia responder pelo resultado porque não havia como ela impedir que o
menino entrasse no elevador, além de não ser previsível que ele iria cair do
prédio.

No entanto, em uma análise preliminar,
o STJ considerou que, tendo em vista a tenra idade da vítima (5 anos), o
simples fato de o garoto ter conseguido entrar sozinho no elevador já
configura, em tese, uma omissão penalmente relevante cometida pela ré que,
presumivelmente, não agiu com a necessária cautela e com a abnegação que lhe
era devida.

É certo que a defesa ainda poderá alegar
e comprovar que a “fuga” da criança e a sua entrada no elevador eram
inevitáveis. No entanto, isso deverá ainda ser objeto de cautelosa, sensível e
detalhada instrução probatória, pois não restará configurado o delito omissivo
quando demonstrado que a pessoa à qual se atribui a obrigação de evitar o
resultado não tinha condições de agir para impedi-lo.

O certo é que, a partir de uma análise
perfunctória (superficial, não aprofundada) própria da via estreita do habeas corpus,
não se vislumbra inequívoca atipicidade da conduta imputada à ré.

 

Isso significa que podemos atribuir,
com certeza, ao caso concreto a tipificação do crime de abandono de incapaz?

NÃO. Isso porque não houve até o
momento a fase de instrução probatória capaz de elucidar as nuances fáticas do
caso concreto. Assim finaliza o próprio STJ:

“No
entanto, as nuances que definirão esse lapso temporal atípico deverão ser
objeto de cautelosa, sensível e detalhada instrução probatória, pois não
restará configurado o delito omissivo quando demonstrado que a pessoa à qual se
atribui a obrigação de evitar o resultado não tinha condições de agir para
impedi-lo. Portanto, da análise perfunctória consentânea à via estreita do
habeas corpus, não se vislumbra inequívoca atipicidade da conduta irrogada à
paciente. Ademais, com esteio nos fatos descritos na denúncia, teoricamente, é
possível identificar na exordial acusatória as situações ensejadoras do perigo
concreto: 1) a tenra idade da vítima (absolutamente incapaz de defender-se de
quaisquer situações de perigo que se apresentassem à sua frente); 2) a falta de
familiaridade com o local; 3) a incapacidade de determinar o correto curso do
elevador, tendo em vista que acionou diversos botões aleatoriamente, exceto o
que o levaria ao encontro de sua genitora, no pavimento térreo. Com efeito, a
complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na
conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da
denúncia implicam a conveniência da instrução probatória”.

 

Em suma:

Não
há falar em trancamento da ação penal quando a complexidade dos fatos e da
adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação
de juízos normativos preliminares da denúncia, implicam a conveniência da
instrução probatória.

STJ. 5ª Turma. RHC
150.707-PE, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. Acd. Min. Joel Ilan
Paciornik, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

 

Artigo Original em Dizer o Direito

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