Imagine a seguinte situação
hipotética:

A Lei estadual 2.333/2010 foi
editada com o objetivo de regulamentar o funcionamento de casas de bingo no
Estado. Esta Lei é inconstitucional, conforme previsto na SV 2 (“É
inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha
sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias.”).
Apesar disso, esta norma nunca
foi impugnada.
Um ano mais tarde, o mesmo Estado
editou a Lei 2.555/2011 estabelecendo novas regras sobre o funcionamento dos
bingos e revogando expressamente a Lei 2.333/2010.
Suponha agora que o
Procurador-Geral da República irá ajuizar uma ADI contra a Lei 2.555/2011. Qual
é o cuidado adicional que ele deverá adotar?

Se
o autor da ADI perceber que a norma anterior que foi revogada pela norma atual que
está sendo impugnada padece do mesmo vício de inconstitucionalidade, ele deverá
impugnar tanto a lei atual como a revogada.

Em nosso exemplo, a norma
atualmente vigente (Lei 2.555/2011) é inconstitucional e vai ser objeto da ADI.
No entanto, o autor da ação deverá, na petição inicial, requerer que a norma
anterior (Lei 2.333/2010), que foi revogada pela norma impugnada, também seja
declarada inconstitucional.
Desse modo, o autor da ADI deverá
impugnar todo o “complexo normativo“, ou
seja, tanto a norma atual como aquelas que eventualmente foram revogadas e que
tinham o mesmo vício. Nesse sentido:
(…) Considerações em
torno da questão da eficácia repristinatória indesejada e da necessidade de
impugnar os atos normativos, que, embora revogados, exteriorizem os mesmos
vícios de inconstitucionalidade que inquinam a legislação revogadora.
– Ação direta que impugna,
não apenas a Lei estadual nº 1.123/2000, mas, também, os diplomas legislativos
que, versando matéria idêntica (serviços lotéricos), foram por ela revogados.
Necessidade, em tal hipótese, de impugnação de todo o complexo normativo.
Correta formulação, na espécie, de pedidos sucessivos de declaração de
inconstitucionalidade tanto do diploma ab-rogatório quanto das normas por ele
revogadas, porque também eivadas do vício da ilegitimidade constitucional.
Reconhecimento da inconstitucionalidade desses diplomas legislativos, não
obstante já revogados.
STF. Plenário. ADI 3148,
Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 13/12/2006.
Por que se exige essa providência
já que a norma anterior já está revogada?

Porque se uma lei é declarada
inconstitucional, em regra, significa que ela é nula desde o seu nascimento e,
portanto, ela nunca produziu efeitos. Se ela nunca produziu efeitos, ela não
revogou a lei anterior. Se ela não revogou a lei anterior, aquela lei que se
pensava ter sido revogada continua a produzir efeitos.
Em nosso exemplo, se o STF
declara a Lei 2.555/2011 inconstitucional, significa que ela nunca produziu
nenhum efeito. Logo, a Lei 2.555/2011 não teve força para revogar a Lei
2.333/2010. Conclusão: a Lei 2.333/2010 continua em vigor.
Dessa forma, se uma lei é
declarada inconstitucional, ocorre o efeito
repristinatório tácito
e as normas que a lei inconstitucional havia
revogado “voltam” a vigorar.
Conforme explica Marcelo
Novelino:
“Nos casos em que a decisão
proferida pelo STF declarar a inconstitucionalidade de uma lei com efeitos
retroativos (ex tunc), a legislação anteriormente revogada voltará a produzir
efeitos, desde que compatível com a Constituição. Ocorre, portanto, o fenômeno
conhecido como efeito repristinatório tácito.
Isso ocorre porque a lei
inconstitucional é considerada um ato nulo, ou seja, com um vício de origem
insanável. Sendo este vício reconhecido e declarado desde o surgimento da lei,
não se pode admitir que ela tenha revogado uma lei válida. (…)” (Manual de Direito Constitucional.
ed., São Paulo: Método, 2014, p. 475).
Confira importante precedente do
STF que expõe este entendimento:
(…) A declaração de
inconstitucionalidade “in abstracto”, considerado o efeito
repristinatório que lhe é inerente (RTJ 120/64 – RTJ 194/504-505 – ADI
2.867/ES, v.g.), importa em restauração das normas estatais revogadas pelo
diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. É que a lei
declarada inconstitucional, por incidir em absoluta desvalia jurídica (RTJ
146/461-462), não pode gerar quaisquer efeitos no plano do direito, nem mesmo o
de provocar a própria revogação dos diplomas normativos a ela anteriores. Lei
inconstitucional, porque inválida (RTJ 102/671), sequer possui eficácia
derrogatória. A decisão do Supremo Tribunal Federal que declara, em sede de
fiscalização abstrata, a inconstitucionalidade de determinado diploma normativo
tem o condão de provocar a repristinação dos atos estatais anteriores que foram
revogados pela lei proclamada inconstitucional. (…)
STF. Plenário. ADI 3148,
Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 13/12/2006.
Assim, o autor da ADI deverá
impugnar a lei atual e a lei revogada (se esta contiver o mesmo vício) a fim de
evitar uma “eficácia repristinatória indesejada“,
ou seja, com o objetivo de evitar que aquela decisão do STF seja inútil. Digo
inútil porque a lei atual será declarada inconstitucional, mas
“voltará” uma lei com semelhante mácula.
“No caso de efeito
repristinatório indesejado, ou seja, quando a lei revogada também for eivada do
vício de inconstitucionalidade, faz-se necessária a formulação de pedidos
sucessivos de declaração de inconstitucionalidade, tanto do diploma
ab-rogatório quanto das normas por ele revogadas. Caso a norma anterior não
seja impugnada, a ADI não será conhecida.” (Manual de Direito Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Método, 2014,
p. 476).
Lei nº 9.868/99

A “ressurreição” da
norma revogada é prevista expressamente no art. 11, § 2º da Lei que trata sobre
a ADI/ADC (Lei nº 9.868/99):
Art. 11 (…) § 2º A concessão
da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo
expressa manifestação em sentido contrário.
Apesar de esse dispositivo falar
apenas em “medida cautelar”, ele é aplicável também, por óbvio, para
os casos em que há julgamento definitivo da ADI.
E por que se está falando sobre
esse assunto?

Para contextualizar um
interessante caso decidido pelo STF.
Foi
proposta uma ADI contra a Lei nº 3.041/2005, do Estado do Mato Grosso do Sul,
que tratava sobre assunto de competência da União. Ocorre que esta Lei havia
revogado outras leis estaduais de mesmo conteúdo. Desse modo, se a Lei nº
3.041/2005 fosse, isoladamente, declarada inconstitucional, as demais leis
revogadas “voltariam” a vigorar mesmo padecendo de idêntico vício.

A
fim de evitar essa “eficácia repristinatória indesejada”, o PGR, que
ajuizou a ação, impugnou não apenas a Lei nº 3.041/2005, mas também aquelas
outras normas por ela revogadas.

O
STF concordou com o PGR e, ao declarar inconstitucional a Lei nº 3.041/2005,
afirmou que não deveria haver o efeito repristinatório em relação às leis
anteriores de mesmo conteúdo.

O
dispositivo do acórdão ficou, portanto, com a seguinte redação:

“O
Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido
formulado para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.041/2005, do Estado
de Mato Grosso do Sul, inexistindo efeito repristinatório em
relação às leis anteriores de mesmo conteúdo
, (…)” (grifou-se)

STF. Plenário. ADI 3.735/MS, Rel.
Min. Teori Zavascki, julgado em 8/9/2016 (Info 838).

Artigo Original em Dizer o Direito

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