O
caso concreto, com adaptações, inclusive quanto aos nomes, foi o seguinte:
Um indivíduo fez uma
publicação no Facebook com a foto de João e seu filho Gustavo (de 5 anos), acompanhado
do seguinte texto:
“Atenção. Comunicado urgente. Cuidado com
esse homem. Ele é pedófilo. Estuprou a própria sobrinha. Se alguém o ver (sic)
denuncie. Ele é perigoso. Seu nome é… Não deixe seus filhos perto dele”.
Ao tomar
conhecimento dessa postagem, João “denunciou” a postagem na ferramenta que a
própria rede social disponibiliza para isso. O Facebook respondeu o seguinte:
“Agradecemos o tempo dedicado em denunciar algo
que você acredita violar nossos padrões da comunidade. Denúncias como a sua são
uma parte importante do processo para tornar o Facebook um local seguro e acolhedor.
Analisamos a foto denunciada por você por assédio e constatamos que ela não
viola nossos padrões de comunidade”.
Vale
ressaltar que João nunca foi sequer investigado por qualquer crime contra a
dignidade sexual e nem mesmo possui sobrinha.
Diante
disso, ele procurou a polícia, fez um boletim de ocorrência e ajuizou ação
contra o Facebook.
O
juiz condenou a empresa a:
a)
retirar a publicação;
b)
apresentar os endereços de IP’s e URL’s relativos à página delituosa e sua
localização;
c)
pagar R$ 30 mil a João e R$ 30 mil a seu filho Gustavo.
O
TJ/MG manteve a sentença.
O Facebook interpôs
recurso especial afirmando que, segundo o art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco
Civil da Internet), ele somente poderia ser responsabilizado se tivesse
recebido uma ordem judicial para retirar a publicação e tivesse descumprido.
Como recebeu apenas uma notificação extrajudicial, ele não seria obrigado a
retirar o conteúdo. Veja a redação do art. 19 invocado pelo Facebook:
Art.
19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet
somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de
conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as
providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como
infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
A
condenação do Facebook foi mantida pelo STJ?
SIM.
Inicialmente,
é importante esclarecer que o art. 19 do Marco Civil da Internet realmente diz
isso que o Facebook alegou.
Se
o provedor de aplicações (exs: Facebook, Instagram, Youtube) disponibilizar
conteúdo gerado por terceiros e a postagem feita causar prejuízos a alguém (ex:
ofensa à honra), o que deve ser feito para a remoção do material? Exige-se
autorização judicial para a remoção do conteúdo?
Em
regra, sim.
O
art. 19 do MCI consagra a reserva de jurisdição e exige ordem judicial para a
remoção do conteúdo.
Assim,
a pessoa lesada precisa ingressar com ação para conseguir uma ordem judicial
específica determinando ao provedor que remova o conteúdo.
Exige-se
ordem judicial porque a regra no ordenamento jurídico à liberdade de expressão
e a proibição da censura.
Desse
modo, em regra, o provedor de aplicações somente será responsabilizado se,
mesmo recebendo a ordem judicial, não tomar as providências devidas e
possíveis, dentro do prazo assinalado, para tornar indisponível o conteúdo.
No
caso concreto, contudo, a situação é diferente porque se tratava de post
envolvendo publicação ofensiva a imagem de uma criança.
Proteção
conferida pela CF/88 e pelo ECA
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 18) e a Constituição Federal (art.
227) impõem, como dever de toda a sociedade, zelar pela dignidade da criança e
do adolescente, colocando-os a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, com a finalidade,
inclusive, de evitar qualquer tipo de tratamento vexatório ou constrangedor.
As
leis protetivas do direito da infância e da adolescência possuem natureza
especialíssima, pertencendo à categoria de diploma legal que se propaga por
todas as demais normas, com a função de proteger sujeitos específicos, ainda
que também estejam sob a tutela de outras leis especiais.
Para
atender ao princípio da proteção integral consagrado no direito infantojuvenil,
é dever do provedor de aplicação na rede mundial de computadores (Internet)
proceder à retirada de conteúdo envolvendo menor de idade – relacionado à
acusação de que seu genitor havia praticado crimes de natureza sexual – logo
após ser formalmente comunicado da publicação ofensiva, independentemente de
ordem judicial.
O
provedor de aplicação que, após notificado, nega-se a excluir publicação
ofensiva envolvendo menor de idade, deve ser responsabilizado civilmente,
cabendo impor-lhe o pagamento de indenização pelos danos morais causados à
vítima da ofensa.
Relevante
omissão de sua conduta
A
responsabilidade civil, em tal circunstância, deve ser analisada sob o enfoque
da relevante omissão de sua conduta, pois o provedor deixou de adotar
providências que estavam sob seu alcance e que minimizariam os efeitos do ato
danoso praticado por terceiro.
Assim,
apesar do art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) dispor que o
provedor somente será responsável civilmente, em razão de publicação gerada por
terceiro, se descumprir ordem judicial determinando as providências necessárias
para cessar a exibição do conteúdo ofensivo, afigura-se insuficiente a sua
aplicação isolada.
O
art. 19 do MCI deve ser interpretado à luz do art. 5º, X, da Constituição
Federal, de forma que ele não impede a responsabilização do provedor de
serviços por outras formas de atos ilícitos, que não se limitam ao
descumprimento da ordem judicial a que se refere o dispositivo da lei especial.
Constitucionalidade
do art. 19
Registra-se,
por fim, que a constitucionalidade do art. 19 da Lei nº 12.965/2014 será ainda
decidida pelo Supremo Tribunal Federal (Tema nº 987/STF), que reconheceu
repercussão geral da questão constitucional suscitada, sem determinar a
suspensão dos processos em curso.
Em
suma:
STJ. 4ª Turma. REsp 1.783.269-MG, Rel. Min.
Antonio Carlos Ferreira, julgado em 14/12/2021 (Info 723).