Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje a Lei nº
14.110/2020, que altera o crime de denunciação caluniosa, previsto no art. 339
do Código Penal. 

Vejamos o que mudou. Para isso, é
necessário inicialmente compararmos os textos:

DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA

Redação anterior do CP

Redação dada pela Lei 14.110/2020

Art.
339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo
judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil
ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de
que o sabe inocente:

Art.
339. Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento
investigatório criminal
, de processo judicial, de processo
administrativo disciplinar
, de inquérito civil ou de ação de improbidade
administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração
ético-disciplinar ou ato ímprobo
de que o sabe inocente:

Dar
causa à instauração de:

· investigação policial;

 

· processo judicial

· investigação
administrativa;

· inquérito civil; ou

· ação de improbidade
administrativa


contra alguém, imputando-lhe


crime


de que o sabe inocente:

Dar
causa à instauração de:

· inquérito
policial;

· procedimento
investigatório
;

· processo judicial

· processo
administrativo disciplinar
;

· inquérito civil; ou

· ação de improbidade
administrativa


contra alguém, imputando-lhe

… crime, infração ético-disciplinar ou ato
ímprobo


de que o sabe inocente:

 

 

1ª alteração: foi substituída a
expressão “investigação policial” por “inquérito policial”

· Antes: era crime dar causa indevidamente à
instauração de investigação policial.

· Agora: é crime dar causa indevidamente à instauração
de inquérito policial.

 

O que era considerado
investigação policial para os fins do art. 339 do CP?

“Investigação policial” é uma expressão
ampla, que abrange a realização de quaisquer diligências feitas pela polícia com
o objetivo de apurar a infração penal.

Assim, configurava denunciação
caluniosa a conduta do agente que, mesmo sabendo que a pessoa era inocente,
provocava a autoridade policial que, em razão disso, iniciava diligências
investigatórias preparatórias para apurar os fatos. O crime se consumava com o
início dessas diligências, ainda que o Delegado decidisse nem instaurar
inquérito policial.

Essa era a jurisprudência do STJ
e a doutrina majoritária antes da Lei nº 14.110/2020:

Para a configuração do crime previsto
no artigo 339 do Código Penal, é necessário que a denúncia falsa dê ensejo à
deflagração de uma investigação administrativa, sendo prescindível, contudo,
que haja a formalização de inquérito policial ou de termo circunstanciado.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp
1849006/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 27/10/2020.

 

E depois da Lei nº
14.110/2020? O art. 334 do CP agora fala expressamente em “dar causa à
instauração de inquérito policial”. Imagine que o Delegado receba uma notícia
de crime. Ele, contudo, percebe que os indícios são frágeis e, em razão disso,
decide fazer investigação preliminar antes da instauração do inquérito
policial. Na investigação contata-se que a delação foi feita por um inimigo do
investigado que sabia da sua inocência. Haverá denunciação caluniosa mesmo não
tendo sido instaurado inquérito policial?

O tema certamente causará
controvérsia, mas penso que sim. Isso porque, a despeito de não ter sido
necessária a instauração de investigação policial, houve a realização de um
“procedimento investigatório criminal”.

A nova redação do art. 334 do CP
afirma que haverá denunciação caluniosa no caso de o agente dar causa à
instauração de “procedimento investigatório criminal”, imputando-lhe crime de que
o sabe inocente. Foi justamente esse o caso.

Logo, penso que, a despeito de o
tipo penal não falar mais em “investigação policial”, não houve mudança
substancial considerando que a nova redação menciona a instauração indevida de
“procedimento investigatório criminal”, expressão genérica que engloba a
“investigação policial”.

 

Para que ocorra o crime de
denunciação caluniosa é necessário o indiciamento?

Para entendermos melhor, imagine
a seguinte situação hipotética:

João compareceu até o Ministério
Público e prestou depoimento alegando que foi torturado por Pedro.

O Promotor de Justiça requisitou
a instauração de inquérito policial para apurar o fato.

Durante a investigação, o
Delegado constatou que não houve tortura e que João prestou tais declarações
por ser inimigo de Pedro.

Ao final do inquérito, a
autoridade policial elaborou relatório no qual afirmou expressamente que estava
deixando de fazer o indiciamento de Pedro por ausência de crime.

Ao receber o inquérito, o
Promotor de Justiça denunciou João pela prática do crime de denunciação
caluniosa, tipificado no art. 339 do CP.

João afirmou que realmente
comunicou um crime que não ocorreu. Alegou, contudo, que Pedro não teve
qualquer prejuízo, considerando que não foi indiciado pela autoridade policial.
Desse modo, argumentou que a sua conduta não se enquadra no art. 339, mas sim
no delito do art. 340 do CP:

 

Nesse exemplo, houve denunciação
caluniosa?

Antes da Lei nº 14.110/2020: SIM.
Havia decisões do STJ nesse sentido:

Se, em razão da comunicação falsa
de crime, houve a instauração de inquérito policial, sendo a falsidade
descoberta durante os atos investigatórios nele realizados, o delito cometido é
o de denunciação caluniosa, previsto no art. 339 do CP.

O fato de o indivíduo apontado
falsamente como autor do delito inexistente não ter sido indiciado no curso da
investigação não é motivo suficiente para desclassificar a conduta para o crime
do art. 340.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.482.925-MG,
Rel. Min. Sebastião Reis, julgado em 6/10/2016 (Info 592).

 

E depois da Lei nº 14.110/2020?

Sim. O entendimento continua o
mesmo, ou seja, haverá o crime de denunciação caluniosa mesmo que, no curso do
inquérito policial, não ocorra o indiciamento.

Repare que o novo texto do art.
339 fala em “dar causa à instauração de inquérito policial”. Logo, não se
exige o indiciamento. Com a mera instauração do inquérito policial, a estrutura
estatal já foi acionada indevidamente, tendo sido violado o bem jurídico
protegido, razão pela qual restou configurado o crime.

 


alteração
: inserção do procedimento investigatório criminal

· Antes: o art. 339 falava apenas em “investigação
policial”, ou seja, investigação criminal conduzida pela Polícia.

· Agora: é crime dar causa à instauração de procedimento
investigatório criminal (expressão ampla que abrange investigações conduzidas
pelo Ministério Público).

 

Durante muitos anos houve um
intenso debate se o Ministério Público poderia, ou não, diretamente, instaurar
investigação para apurar crimes.

O tema só foi pacificado em 2015,
quando o Plenário do STF afirmou que sim: STF. Plenário. RE 593727/MG, rel.
orig. Min. Cezar Peluso, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em
14/5/2015 (repercussão geral) (Info 785).

Como a redação anterior do art. 339
do Código Penal era do ano de 2000, época em que não havia investigações
conduzidas diretamente pelo MP, o tipo penal da denunciação caluniosa não
abrangia essa hipótese.

Ocorre que o cenário mudou e passaram
a ser realizadas diversas investigações criminais diretamente conduzidas pelo
Ministério Público.

O tema encontra-se atualmente
disciplinado pela Resolução nº 181/2016, do Conselho Nacional do Ministério
Público, que traz regras para que o membro do Parquet instaure procedimento
investigatório criminal (conhecido pela sigla PIC):

Art. 1º O procedimento investigatório
criminal é instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e
investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com
atribuição criminal, e terá como finalidade apurar a ocorrência de infrações
penais de iniciativa pública, servindo como preparação e embasamento para o
juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal. (Redação dada pela
Resolução nº 183, de 24 de janeiro de 2018)

 

Diante disso,
o ponto de discussão é o seguinte:

DENUNCIAÇÃO
CALUNIOSA E PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO CONDUZIDO PELO MP

Se um determinado indivíduo dá causa à instauração
de procedimento investigatório criminal contra alguém, no âmbito do
Ministério Público, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, haverá
denunciação caluniosa?

Antes da Lei
14.110/2020: polêmica

Depois da Lei
14.110/2020: SIM

Havia duas correntes:

1ª) Sim. Seria possível com
base em uma intepretação extensiva da expressão “investigação policial”.

2ª) Não. Admitir a denunciação
caluniosa seria realizar analogia in malan partem.

Prevalecia a segunda corrente.

O legislador atualizou o texto
legal e passou a prever expressamente que se alguém der causa indevidamente à
instauração de procedimento investigatório criminal contra pessoa inocente,
isso caracteriza sim denunciação caluniosa.

 

Essa mudança pode ser aplicada
para fatos ocorridos antes de 21/12/2020 (data da entrada em vigor da Lei nº
14.110/2020)?

Depende.

·
Para aqueles que adotavam a 1ª corrente, sim. Isso porque a nova redação da Lei
nº 14.110/2020 apenas deixou claro algo que já era possível com base em uma
interpretação extensiva. Assim, a nova Lei apenas corroborou o entendimento que
já deveria ser adotado.

·
Para aqueles que adotavam a 2ª corrente, não. O argumento aqui já é o
contrário. A Lei nº 14.110/2020 foi necessária justamente porque antes não
havia essa possibilidade. Desse modo, a instauração indevida de PIC somente
passou a ser considerada denunciação caluniosa para fatos ocorridos a partir de
21/12/2020.

 

Quando a nova redação do
art. 339 do CP fala em “procedimento investigatório criminal”, isso abrange
unicamente o procedimento conduzido pelo Ministério Público?

O tema causará controvérsia, mas
penso que não.

É certo que o objetivo principal
da Lei nº 14.110/2020, ao inserir a expressão “procedimento investigatório
criminal” foi resolver a polêmica acima demonstrada e definir que a denunciação
caluniosa abrange também as investigações conduzidas pelo Ministério Público.

Contudo, a redação utilizada pela
Lei foi ampla e não ficou restrita às investigações realizadas no âmbito do
Ministério Público.

 

 


alteração
: a expressão “investigação administrativa” foi
substituída por “processo administrativo disciplinar”

· Antes: o art. 339 utilizava a expressão
“investigação administrativa”.

· Agora: a expressão foi alterada para “processo
administrativo disciplinar”.

 

Acepções do processo
administrativo disciplinar

A expressão “processo
administrativo disciplinar” pode ter duas acepções:

1) Processo administrativo em
sentido amplo;

2) Processo administrativo
propriamente dito (em sentido estrito).

 

Processo administrativo
disciplinar em sentido amplo

O processo administrativo
disciplinar (em sentido amplo) divide-se em:

• sindicância;

• processo administrativo
disciplinar propriamente dito (PAD).

 

Espécies de sindicância

Existem duas espécies de
sindicância:

a) sindicância investigatória
(preparatória): instaurada para servir como uma espécie de investigação prévia
do fato. Nela não há contraditório e ampla defesa.

b) sindicância de caráter punitivo
(contraditória, acusatória): ocorre quando é instaurada para julgar o fato,
conferindo contraditório e podendo, ao final, aplicar penalidade de advertência
ou suspensão de até 30 dias.

 

Quando o art. 339 do CP
falava dar causa à instauração de “investigação administrativa”, isso abrangia
a sindicância?

O STJ possuía o entendimento,
antes da Lei nº 14.110/2020, no sentido de que a instauração de sindicância
administrativa, com a prática efetiva de atos de investigação, visando à
apuração dos fatos, satisfaz o elemento objetivo do tipo previsto no art. 339
do Código Penal. Nesse sentido: STJ. 6ª Turma. HC 477.243/DF, Rel. Min.
Sebastião Reis Júnior, julgado em 23/04/2019.

 

E agora, com a alteração
promovida pela Lei nº 14.110/2020? Dar causa à instauração indevida de
sindicância administrativa enseja a prática de denunciação caluniosa?

Penso que não. Entendo que,
quando o art. 339 do CP, com a redação dada pela Lei nº 14.110/2020, menciona
dar causa a processo administrativo disciplinar, ele está se referindo ao
processo administrativo disciplinar propriamente dito (PAD). Logo, a
instauração de mera sindicância não é suficiente para caracterizar o crime do
art. 339 do CP.

 

 

4ª alteração: denunciação caluniosa pela
falsa imputação de infração ético-disciplinar ou ato ímprobo

· Antes: só havia denunciação caluniosa com a falsa imputação
de crime (caput) ou contravenção penal (§ 2º).

· Agora: é possível também a denunciação caluniosa
pela falsa imputação de infração ético-disciplinar ou ato de improbidade.

 

Imputação de infração-ético
disciplinar

Perceba a importância da
alteração com o seguinte exemplo:

João, insatisfeito com decisão
judicial proferida contra seus interesses, ingressa com reclamação disciplinar
no Conselho Nacional de Justiça afirmando falsamente que, na audiência, foi
humilhado pelo magistrado, que o teria tratado de forma descortês e com
linguajar rude.

O art. 22 do Código de Ética da
Magistratura Nacional prevê que o magistrado tem o dever de cortesia para com
as partes e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça.

Diante disso, o CNJ instaurou
processo administrativo disciplinar para apurar as alegações do reclamante,
tendo, contudo, ficado comprovado que o juiz não praticou a conduta imputada.

 

Indaga-se: João poderá ser
responsabilizado por denunciação caluniosa?

·
Antes da Lei nº 14.110/2020: NÃO. Isso porque só havia denunciação caluniosa no
caso de falsa imputação de crime. Tratar as partes com descortesia, apesar de se
caracterizar como infração-ético disciplinar, não configura, em princípio,
crime.

·
Depois da Lei nº 14.110/2020: SIM. Isso porque com a nova Lei a falsa imputação
de infração ético-disciplinar passa a ser hipótese de denunciação caluniosa.

 

Ato ímprobo

Imagine a seguinte situação
hipotética:

Pedro, inimigo político de
Roberto (Prefeito), procura o Ministério Público afirmando que o chefe do Poder
Executivo municipal praticou ato de improbidade administrativa. Ocorre que a
imputação é falsa e Pedro sabe que Roberto é inocente.

O Promotor de Justiça instaura
inquérito civil que, ao final, é arquivado.

 

Indaga-se: Pedro praticou o crime
de denunciação caluniosa do art. 339 do CP?

A grande dúvida sobre o tema está
no fato de que o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa – LIA (Lei nº
8.429/92) traz uma disposição semelhante:

Art. 19. Constitui crime a
representação por ato de improbidade contra agente público ou terceiro
beneficiário, quando o autor da denúncia o sabe inocente.

Pena: detenção de seis a dez meses e
multa.

Parágrafo único. Além da sanção penal,
o denunciante está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais,
morais ou à imagem que houver provocado.

 

DENUNCIAÇÃO
CALUNIOSA E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Qual é o
crime praticado pela pessoa que dá causa à instauração de inquérito civil ou
de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe fato ímprobo
de que o sabe inocente?

Antes da Lei
14.110/2020:

Depois da Lei
14.110/2020:

Depende:

·
Se a conduta imputada se amoldar como ato de improbidade e também estiver
prevista como infração penal: o agente responde pelo art. 339 do CP
(denunciação caluniosa). Ex: a pessoa afirmou falsamente que o prefeito
recebeu propina (art. 9º, I, da LIA; art. 317 do CP).

·
Se a conduta imputada for apenas o ato de improbidade não configurar infração
penal: o agente responde pelo crime do art. 19 da LIA. Ex: a pessoa afirmou
falsamente que o prefeito fez publicidade governamental que caracteriza promoção
pessoal. Tal conduta configura ato de improbidade (art. 11 da LIA), mas não é
crime.

A redação anterior do caput do
art. 339 do CP só admitida a denunciação caluniosa em caso de falsa imputação
de crime.

Em ambos os casos, o agente
responderá pelo crime do art. 339 do CP.

Se a falsa conduta imputada for
improbidade e crime, o agente responde pelo art. 339 do CP.

Se a falsa conduta imputada for
apenas improbidade (e não crime), o agente também responde pelo art. 339 do
CP.

A Lei nº 14.110/2020 alterou a
redação do art. 339 do CP e passou a admitir a denunciação caluniosa em caso
de falsa imputação de ato ímprobo.

E o art. 11 da Lei de
Improbidade Administrativa? Foi tacitamente revogado pela Lei nº 14.110/2020.
Vale ressaltar, no entanto, que ele continua a ser aplicado para as situações
anteriores a 21/12/2020, porque o art. 339 do CP é mais gravoso (art. 5º, XL,
da CF/88).

 

Vigência

A Lei nº 14.110/2020 entrou em
vigor na data de sua publicação (21/12/2020).

 

Autor: 

Márcio André Lopes Cavalcante

 

Artigo Original em Dizer o Direito

Posts Similares

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.