TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

Em um contrato, se uma parte descumpre
a sua obrigação, a parte credora terá, em regra, duas opções:

1) poderá exigir o cumprimento da
prestação que não foi adimplida; ou

2) pedir a resolução (“desfazimento”)
do contrato.

Além disso, tanto em um caso como no
outro, ela poderá também pedir o pagamento de eventuais perdas e danos que
comprove ter sofrido. Isso está previsto no art. 475 do Código Civil:

Art. 475. A parte lesada pelo
inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o
cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

A teoria do adimplemento substancial tem
por objetivo mitigar o que foi explicado acima. Segundo essa teoria, se a parte
devedora cumpriu quase tudo que estava previsto no contrato (ex: eram 48
prestações, e ela pagou 46), então, neste caso, a parte credora não terá
direito de pedir a resolução do contrato porque, como faltou muito pouco, o
desfazimento do pacto seria uma medida exagerada, desproporcional, injusta e violaria
a boa-fé objetiva.

Desse modo, havendo adimplemento
substancial (adimplemento de grande parte do contrato), o credor teria apenas
uma opção: exigir do devedor o cumprimento da prestação (das prestações) que
ficou (ficaram) inadimplida(s) e pleitear eventual indenização pelos prejuízos
que sofreu.

Veja o clássico conceito de Clóvis do Couto
e Silva:

Adimplemento substancial “constitui um
adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta
das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o
pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria
a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)” (O Princípio da Boa-Fé no
Direito Brasileiro e Português in
Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: RT, 1980, p. 56).

A origem desta teoria remonta o Direito
Inglês do séc. XVIII, tendo lá recebido o nome de “substancial performance“.

A teoria do adimplemento substancial é
acolhida pelo STJ?

SIM. Existem julgados adotando
expressamente a teoria. Vale ressaltar, no entanto, que seu uso não pode ser
banalizado a ponto de inverter a lógica jurídica de extinção das obrigações. O
“normal” que as partes esperam legitimamente é que os contratos sejam cumpridos
de forma integral e regular.

Diante disso, a fim de que haja
critérios, o STJ afirma que são necessários três requisitos para a aplicação da
teoria:

a) a existência de expectativas
legítimas geradas pelo comportamento das partes;

b) o pagamento faltante há de ser
ínfimo em se considerando o total do negócio;

c) deve ser possível a conservação da
eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia
devida pelos meios ordinários.

STJ. 4ª Turma. REsp 1581505/SC, Rel. Min.
Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016.

Feitas estas considerações, imagine
a seguinte situação hipotética:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA

Conceito

“A alienação fiduciária em garantia é
um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a
propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição
financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado
quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André Luiz Santa
Cruz. Direito Empresarial Esquematizado.
São Paulo: Método, 2012, p. 565).

Regramento

O Código Civil de 2002 trata de forma
genérica sobre a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368-B. Existem,
no entanto, leis específicas que também regem o tema:

• alienação fiduciária envolvendo bens
imóveis: Lei nº 9.514/97;

• alienação fiduciária de bens móveis
no âmbito do mercado financeiro e de capitais: Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei nº
911/69. É o caso, por exemplo, de um automóvel comprado por meio de
financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária.

Nas hipóteses em que houver legislação
específica, as regras do CC-2002 aplicam-se apenas de forma subsidiária:

Art. 1.368-A. As demais espécies de
propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina
específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições
deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.

Resumindo:

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS fungíveis e infungíveis
quando o credor fiduciário for instituição financeira

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS infungíveis quando o
credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica (sem ser banco)

Alienação fiduciária de

bens IMÓVEIS

Lei
nº 4.728/65

Decreto-Lei
nº 911/69

Código
Civil de 2002

(arts.
1.361 a 1.368-A)

Lei
nº 9.514/97

INAPLICABILIDADE DA TEORIA DO
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL À ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA REGIDA PELO DL 911/69

A espécie mais comum de alienação
fiduciária é a de automóveis, que é regida pelo Decreto-Lei nº 911/69.
Ex: Antônio quer comprar um carro de R$
30 mil, mas somente possui R$ 10 mil. Antônio procura o Banco “X”, que celebra
com ele contrato de financiamento com garantia
de alienação fiduciária
.

Assim, o Banco “X” empresta R$ 20 mil a
Antônio, que compra o veículo. Como garantia do pagamento do empréstimo, a
propriedade resolúvel do carro ficará com o Banco “X” e a posse direta com
Antônio.

Em outras palavras, Antônio ficará
andando com o carro, mas, no documento, a propriedade do automóvel é do Banco
“X” (constará: “alienado fiduciariamente ao Banco X”). Diz-se que o banco tem a
propriedade resolúvel porque, uma vez pago o empréstimo, a propriedade do carro
pelo banco “resolve-se” (acaba) e o automóvel passa a pertencer a Antônio.

Antônio financiou o veículo em 48 prestações.
Após pagar 44 parcelas, ele ficou desempregado e não conseguiu arcar com as 4
últimas prestações.

O que acontece em caso de
inadimplemento do mutuário (em nosso exemplo, Antônio)?

Havendo mora por parte do mutuário, deverá
ser adotado o procedimento previsto no DL 911/69:

Notificação do devedor

O credor deverá fazer a notificação
extrajudicial do devedor de que este se encontra em débito, comprovando, assim,
a mora. Essa notificação é indispensável para que o credor possa ajuizar ação
de busca e apreensão. Confira:

Súmula 72-STJ: A comprovação da mora é
imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente.

Como
é feita a notificação do devedor? Essa notificação precisa ser realizada por
intermédio do Cartório de Títulos e Documentos?

NÃO.
Essa notificação é feita por meio de carta registrada com aviso de recebimento.
Logo, não precisa ser realizada por intermédio do Cartório de RTD.

O
aviso de recebimento da carta (AR) precisa ser assinado pelo próprio devedor?

NÃO.
Não se exige que a assinatura constante do aviso de recebimento seja a do
próprio destinatário (§ 2º do art. 2º do DL 911/69).

Para a constituição em mora por meio de
notificação extrajudicial, é suficiente que seja entregue no endereço do
devedor, ainda que não pessoalmente.

Ajuizamento da ação de busca
e apreensão

Após comprovar a mora, o mutuante
(Banco “X”) poderá ingressar com uma ação de busca e apreensão requerendo que
lhe seja entregue o bem (art. 3º do DL 911/69). Essa busca e apreensão prevista
no DL 911/69 é uma ação especial autônoma e independente de qualquer
procedimento posterior.

Concessão da liminar

O juiz concederá a busca e apreensão de
forma liminar (sem ouvir o devedor), desde que comprovada a mora ou o
inadimplemento do devedor (art. 3º do DL 911/69).

Possibilidade de pagamento integral da
dívida

No prazo de 5 dias
após o cumprimento da liminar (apreensão do bem), o devedor fiduciante poderá
pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo
credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre
do ônus (§ 2º do art. 3º do DL 911/69). Veja o dispositivo legal:

Art. 3º (…)

§ 1º Cinco dias após executada a
liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e
exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições
competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de
propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus
da propriedade fiduciária. (Redação dada pela Lei 10.931/2004)

§ 2º No prazo do § 1º, o devedor
fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente,
segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na
qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela Lei
10.931/2004)

O que se entende por “integralidade da
dívida pendente”?

Todo o débito.

Segundo decidiu o
STJ, a Lei nº 10.931/2004, que alterou o DL 911/69, não mais faculta ao devedor
a possibilidade de purgação de mora, ou seja, não mais permite que ele pague
somente as prestações vencidas.

Para que o devedor fiduciante consiga
ter o bem de volta, ele terá que pagar a integralidade da dívida, ou seja,
tanto as parcelas vencidas quanto as vincendas (mais os encargos), no prazo de
5 dias após a execução da liminar.

Em nosso exemplo, Antônio terá que pagar,
em 5 dias, as 4 parcelas restantes.

O devedor purga a mora quando ele
oferece ao credor as prestações que estão vencidas e mais o valor dos prejuízos
que este sofreu (art. 401, I, do CC). Nesse caso, purgando a mora, o devedor
consegue evitar as consequências do inadimplemento. Ocorre que na alienação
fiduciária em garantia, a Lei n.°
10.931/2004 passou a não mais permitir a purgação da mora.

Vale ressaltar que o tema acima foi
decidido em sede de recurso repetitivo, tendo o STJ firmado a seguinte conclusão,
que será aplicada em todos os processos semelhantes:

Nos
contratos firmados na vigência da Lei 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo
de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão,
pagar a integralidade da dívida – entendida esta como os valores apresentados e
comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade
do bem móvel objeto de alienação fiduciária.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) (Info 540).

Feita esta breve revisão, voltemos ao
nosso exemplo:

O Banco enviou notificação
extrajudicial para Antônio informando que ele se encontrava em débito (Súmula 72-STJ),
mas este não fez a purgação da mora.
Diante disso, a instituição
financeira ingressou com ação de busca e apreensão requerendo a entrega do bem,
conforme autoriza o art. 3º do DL 911/69:
Art. 3º O
proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma
estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o
devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual
será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário.

O juiz concedeu a liminar e o
automóvel saiu da posse de Antônio e foi entregue ao Banco.
Resposta do devedor

O devedor fiduciante apresentou, então,
resposta (uma espécie de contestação) prevista no § 3º do art. 3º do DL 911/69.

Nesta defesa apresentada pelo devedor, ele
pediu a aplicação da teoria do adimplemento substancial, afirmando que cumpriu
quase todas as prestações (cumpriu 91,66% do contrato). Logo, a determinação de
tomar o veículo, resolvendo o contrato, seria uma medida desproporcional.
Argumentou que o banco deveria ter ingressado com ação cobrando as quatro
últimas parcelas que não foram pagas.

A tese do devedor foi aceita pelo STJ?
É possível a aplicação da teoria do adimplemento substancial para a alienação
fiduciária regida pelo DL 911/69?

NÃO.

Não se
aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação
fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.622.555-MG, Rel.
Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em
22/2/2017 (Info 599).

Conforme vimos acima, devidamente
comprovada a mora ou o inadimplemento, o DL 911/69 autoriza que o credor
fiduciário possa se valer da ação de busca e apreensão, sendo irrelevante examinar
quantas parcelas já foram pagas ou estão em aberto.

Além disso, o art. 3º, § 2º do DL 911/69
prevê que o bem somente poderá ser restituído ao devedor se ele pagar, no prazo
de 5 dias, a integralidade da dívida pendente.

Dessa forma, a lei foi muito clara ao
exigir a quitação integral do débito como condição imprescindível para que o
bem alienado fiduciariamente seja remancipado. Ou seja, nos termos da lei, para
que o bem possa ser restituído ao devedor livre de ônus, é necessário que ele quite
integralmente a dívida pendente.

Assim, mostra-se incongruente impedir a
utilização da ação de busca e apreensão pelo simples fato de faltarem poucas
prestações a serem pagas, considerando que a lei de regência do instituto
expressamente exigiu o pagamento integral da dívida pendente.

Incentivo ao inadimplemento das últimas
parcelas

Vale mencionar, ainda, que a aplicação
da teoria do adimplemento substancial para obstar a utilização da ação de busca
e apreensão representaria um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas
contratuais, considerando que o devedor saberia que não perderia o bem e que o
credor teria que se contentar em buscar o crédito faltante por outras vias
judiciais menos eficazes.

Juros mais elevados

Se fosse aplicada a teoria do adimplemento
substancial para os contratos de alienação fiduciária, haveria um enfraquecimento
da garantia prevista neste instituto fazendo com que as instituições
financeiras começassem a praticar juros mais elevados a fim de compensar esses
riscos. Isso seria prejudicial para a economia e para os consumidores em geral.

Dessa forma, a propriedade fiduciária,
concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às
concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, ficaria
comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial.

Artigo Original em Dizer o Direito

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