Imagine
a seguinte situação adaptada:

Maria
padece de enfermidade psíquica grave (esquizofrenia). Ela ajuizou ação de obrigação
de fazer contra seu ex-cônjuge Eduardo e seus filhos Jeferson, Daniel e Michele
pedindo que os réus fossem condenados a arcar com os custos de sua internação
em um estabelecimento adequado.

A
sentença julgou improcedente o pedido.

No
que tange ao ex-cônjuge, o juiz afirmou que o vínculo conjugal entre as partes
foi dissolvido há mais de duas décadas, inexistindo responsabilidade ou
obrigação remanescente entre as partes.

Quanto
aos filhos, o magistrado disse que eles não possuíam capacidade financeira para
custear um local especializado para moradia da autora.

A
autora interpôs apelação, mas o TJ/SP manteve a sentença.

 

Recurso
especial do MP

O
Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs recurso especial alegando
que houve nulidade absoluta do processo diante da ausência de intimação do
Ministério Público. Isso porque o Parquet não foi intimado para intervir no
processo no 1º grau de jurisdição, tendo sido intimado apenas do julgamento da
apelação.

Os
recorridos refutaram o pedido do MP com base em três argumentos:

1)
não houve declaração judicial de incapacidade da autora. Logo, não sendo ela
juridicamente incapaz, não havia motivos para a intervenção do MP;

2)
a nulidade do processo só deve ocorrer se houver prejuízo demonstrado
concretamente, o que não foi o caso;

3)
não há nulidade do processo em virtude da ausência de intimação do Ministério
Público em 1º grau de jurisdição porque houve a intervenção do Parquet no 2º
grau de jurisdição, de sorte que ficou suprida essa eventual falha.

 

O
STJ concordou com os argumentos do MP ou dos recorridos? Houve nulidade?

Com
os argumentos do MP. Houve nulidade. Vamos analisar cada um dos pontos
levantados pelos recorridos.

 

1)
Havendo fundadas suspeitas de que a parte é incapaz, deverá intervir o
MP, ainda que a incapacidade seja de fato (e não de direito)

A
autora, apesar de não ter sido judicialmente declarada incapaz e interditada, argumentou,
desde a petição inicial, que apresenta enfermidade psíquica grave
(esquizofrenia).

Desse modo, deveria
ter havido a intimação e intervenção do Ministério Público, na qualidade de
fiscal do ordenamento jurídico, conforme preconiza o art. 178, II, do CPC:

 

Art.
279. É nulo o processo quando o membro do Ministério Público não for intimado a
acompanhar o feito em que deva intervir.

 

O art. 178, II, do
CPC, ao prever a necessidade de intervenção no processo que envolva interesse
de incapaz, não se refere apenas ao juridicamente incapaz (legal ou
judicialmente declarado como tal). Essa regra abrange, igualmente, o
faticamente incapaz. Nesse sentido:

“(…) pode haver atuação ministerial quando
se constate a incapacidade de fato (vítima de grave AVC), ainda que não haja
declaração formal da incapacidade (interdição). O art. 178, II, do CPC, fala
abstratamente em “interesse de incapaz”, de modo que, diante da falta de
distinção, atua o MP nos feitos de incapazes de fato e de direito.” (GAJARDONI,
Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR.,
Zulmar. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense,
2021).

 

“quando houver fundadas suspeitas de que a
parte ou interessado é incapaz, deverá intervir o MP, ainda que a incapacidade
seja de fato, sob pena de nulidade”. (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de
Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016. p. 729).

 

2) Houve prejuízo concreto porque seria necessário
avaliar a necessidade de se propor a interdição da autora

A
autora apresenta enfermidade psíquica grave sendo, portanto, fato que, em tese,
pode comprometer a sua plena capacidade civil. Desse modo, em princípio, seria
necessário avaliar a eventual necessidade de propositura de ação de interdição
da autora ou, ao menos, da instauração de procedimento de tomada de decisão
apoiada.

A ação de
interdição teria que ser ajuizada por um dos legitimados, na forma dos arts.
747 e 748 do CPC:

Art.
747. A interdição pode ser promovida:

I
– pelo cônjuge ou companheiro;

II
– pelos parentes ou tutores;

III
– pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando;

IV
– pelo Ministério Público.

Parágrafo
único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a
petição inicial.

 

Art.
748. O Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental
grave:

I
– se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou
não promoverem a interdição;

II
– se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do
art. 747.

 

A
partir do exame do rol de legitimados previsto no art. 747 do CPC/15,
constata-se que, na hipótese, a eventual interdição da autora, em princípio,
não poderia ser proposta por cônjuge ou companheiro (pois a autora é divorciada
de seu cônjuge, que inclusive compõe o polo passivo), por parentes ou tutores
(pois indica, como parentes próximos, os filhos, que igualmente compõem o polo
passivo) ou por representante da entidade em que se encontra abrigada (pois, em
verdade, não se encontrada abrigada, pretendendo, nesta ação, justamente essa
espécie de acolhimento).

Dessa forma, constata-se que o único legitimado
indiscutivelmente isento e potencialmente interessado em avaliar a eventual
necessidade de promover a ação de interdição seria o Ministério Público, que
não foi intimado da existência da ação em 1º grau de jurisdição, oportunidade
em que teria ciência da enfermidade psíquica grave da autora e poderia adotar
as medidas adequadas para salvaguardar os seus interesses.

 

3)
No caso concreto, a intervenção em 2º grau não supriu o vício

O
terceiro argumento levantado pelos recorridos, de fato, é a regra geral no STJ.

Assim,
em regra, se houve a intervenção do Ministério Público em 2º grau, essa
participação já supre a falta de intimação do Parquet no 1º grau de jurisdição.
Nesse sentido:

(…) A jurisprudência
desta Corte está consolidada no respeito ao princípio da instrumentalidade das
formas, considerando sanada a nulidade decorrente da falta de intervenção, em
primeiro grau, do Ministério Público, se posteriormente o Parquet intervém no
feito em segundo grau de jurisdição, sem ocorrência de qualquer prejuízo à
parte. (…)

STJ. 3ª Turma. AgInt no
AREsp 1180218/RN, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 16/11/2020.

 

No
caso concreto, contudo, a atuação do Ministério Público em 2º grau não era
capaz de suprir o vício decorrente da ausência de atuação desde o 1º grau.

A
intervenção desde o início se fazia necessária não apenas para a efetiva
participação do Parquet na fase instrutória (por exemplo, requerendo
diligências para melhor elucidar a situação econômica dos filhos e a suposta
impossibilidade de prestar auxílio à mãe), mas também para, se necessário,
propor a ação de interdição apta a, em tese, influenciar decisivamente o
desfecho desta ação.

 

Em
suma:

Artigo Original em Dizer o Direito

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