Imagine a seguinte situação
hipotética:

João, sargento do Exército, contratou,
sem licitação, empresa ligada à sua mulher para prestar manutenção na
ambulância utilizada no Hospital militar.

Qual foi o crime praticado, em tese,
por João?

O delito do art. 89 da Lei nº 8.666/93
(Lei de Licitações):

Art. 89. Dispensar ou inexigir
licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as
formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5
(cinco) anos, e multa.

De quem é a competência para julgar
esta conduta?

Justiça FEDERAL comum (não se trata de
competência da Justiça Militar).

Compete à
Justiça Comum Federal – e não à Justiça Militar – processar e julgar a suposta
prática, por militar da ativa, de crime previsto apenas na Lei nº 8.666/93 (Lei
de Licitações), ainda que praticado contra a administração militar.

STJ. 3ª Seção. CC 146.388-RJ, Rel. Min.
Felix Fischer, julgado em 22/6/2016 (Info 586).

Competências da Justiça Militar

Compete à Justiça Militar
processar e julgar os crimes militares, assim
definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes
militares é o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/1969).
• No art. 9º do CPM são conceituados os
crimes militares, em tempo de paz.

• No art. 10 do CPM são definidos os
crimes militares em tempo de guerra.

Assim, para verificar se o fato pode
ser considerado crime militar, sendo, portanto, de competência da Justiça
Militar, é preciso que ele se amolde em uma das hipóteses previstas nos arts.
9º e 10 do CPM.

Crimes militares em tempo de paz (art.
9º)

Não estamos (felizmente) em “tempo
de guerra”. Portanto, a conduta de João não poderia ser enquadrada no art.
10. Vejamos agora se ela poderia se amoldar ao art. 9º:

Art. 9º Consideram-se crimes militares,
em tempo de paz:

I – os crimes de que trata êste Código,
quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos,
qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – os crimes previstos neste Código,
embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando
praticados:

a) por militar em situação de atividade
ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade
ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da
reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em
razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que
fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou
reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de
manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado,
ou civil;

e) por militar em situação de
atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou
a ordem administrativa militar;

III – os crimes praticados por militar
da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares,
considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do
inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a
administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração
militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra
funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função
inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou
durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício,
acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à
administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no
desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública,
administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou
em obediência a determinação legal superior.

Resumindo
as hipóteses do art. 9º:

Art.
9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

Inciso
I

Inciso
II

Inciso
III

Para se
enquadrar no inciso I:

1) a conduta deve ser
prevista como crime no CPM; e

2) não seja punida como crime
na legislação penal comum ou, se for, que a redação dada ao delito na
legislação penal comum seja diversa daquele conferida no CPM.

Ex: deserção (art. 187 do
CPM) é punida apenas no CPM.

Ex2:
uniforme privativo (art. 172) é punido com redação diversa na legislação
penal comum.

Para se enquadrar no inciso
II:

1) a conduta deve ser
prevista como crime no CPM; e

2) deve ter sido praticada
por um MILITAR em alguma das situações descritas nas letras “a” a
“e” do inciso II.

Para se enquadrar no inciso
III:

1) a conduta deve ser
prevista como crime no CPM;

2) deve ter sido praticada em
alguma das situações descritas nas letras “a” a “d” do
inciso III;

3) a conduta praticada deve
ter ofendido diretamente bens jurídicos tipicamente associados à função
castrense, tais como a defesa da Pátria e a garantia dos poderes
constitucionais, da lei e da ordem (este terceiro requisito é construído pelo
STF).

O tipo de crime militar
descrito no inciso I pode ser praticado:

a) por militar ou

b) por civil.

O tipo
de crime militar descrito no inciso II somente pode ser praticado por
militar. Por isso, é chamado de crime militar próprio puro (autenticamente
militar).

O tipo de crime militar
descrito no inciso III pode ser praticado por militar da reserva, reformado
ou por civil.

Voltando ao exemplo dado:

João, militar da ativa, praticou
uma conduta que não é prevista como crime no CPM
A conduta de dispensar ou inexigir
licitação fora das hipóteses previstas em lei, prevista no art. 89 da Lei n.º
8.666/93, não encontra figura correlata no Código Penal Militar.

Assim, apesar de o crime ter sido
praticado por militar (sargento do Exército), o caso não se enquadra em nenhuma
das hipóteses previstas no art. 9º do CPM.

A competência da Justiça Militar não é
firmada pela condição pessoal do infrator, mas decorre da natureza militar da
infração. Logo, não se verificando crime militar por ausência de enquadramento
nas hipóteses do art. 9º do CPM, não há que se falar em competência da Justiça
Militar.

Não é possível enquadrar o caso no art.
9º, II, “e”, do CPM?

Não. O crime licitatório não está
previsto no Código Penal Militar, e, embora supostamente praticado por militar
da ativa contra a administração militar, não encontra respaldo para se atribuir
a competência para a Justiça Castrense, uma vez que o art. 9º, inciso II,
alínea “e”, exige que o crime esteja expressamente previsto no Código
Penal Militar.

Também não se poderia aplicar o
disposto no inciso III do art. 9º considerando que, no exemplo dado, o agente
não é militar da reserva, reformado nem civil.

E por que a competência é da
Justiça Federal comum?

Porque o crime foi cometido contra
bem e serviço do Exército, que é um órgão da União. Logo, amolda-se na hipótese
prevista no art. 109, IV, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes
federais compete processar e julgar:
IV — os crimes políticos e
as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da
União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as
contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça
Eleitoral;

Artigo Original em Dizer o Direito

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