Imagine a seguinte situação hipotética:

Luiz e mais outras pessoas foram presas preventivamente por
ordem do juiz da 6ª vara criminal, investigados por crimes contra a
administração pública.

Luiz negociou com o Promotores
de Justiça e firmou acordo de colaboração premiada, tendo mencionado em suas
declarações que os valores desviados dos cofres públicos seriam destinados ao
Governador do Estado.

O juiz da 6ª vara homologou o acordo de colaboração
premiada.

Após o acordo, as declarações do colaborador foram enviadas
para o STJ, que instaurou inquérito para apurar a conduta do Governador.

Quando soube do fato, o Governador do Estado peticionou ao STJ
alegando que houve violação à competência deste Tribunal Superior. Isso porque,
conforme prevê o art. 105, I, “a”, da CF/88, compete ao STJ processar e julgar
os Governadores.

O reclamante afirmou que, diante da menção feita à pessoa do
Governador, os autos deveriam ter sido encaminhados ao STJ antes do acordo de
colaboração ser assinado.

Assim, alegou que a negociação do acordo não poderia ter
sido feita pelos Promotores de Justiça e que a homologação não poderia ter sido
realizada pelo juiz de 1º grau.

Ao final, o reclamante requereu que fosse reconhecida a
usurpação de competência e, consequentemente, declarada a nulidade de todos os
atos praticados.

O STJ concordou com os argumentos do Governador?

NÃO. O STJ rejeitou a reclamação e decidiu que:

A
homologação de acordo de colaboração premiada por juiz de 1º grau de
jurisdição, que mencione autoridade com prerrogativa de foro no STJ, não traduz
em usurpação de competência deste Tribunal Superior.

STJ.
Corte Especial. Rcl 31.629-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/09/2017
(Info 612).

Habeas corpus

A defesa do Governador impetrou habeas corpus contra esta
decisão do STJ.

No writ, a defesa alegou que o colaborador narra supostos
crimes que teriam sido praticados pelo Governador. Logo, o acordo de
colaboração deveria ter sido conduzido pela Procuradoria-Geral da República e
submetido à homologação do STJ. Como isso não foi feito, tendo tramitado tudo
em 1ª instância, houve violação do art. 105, I, “a”, da CF/88.

O STF concordou com o habeas corpus?

SIM. A 2ª Turma do STF concedeu a ordem de habeas corpus para
determinar o trancamento do inquérito instaurado perante o STJ em desfavor do Governador.

Este inquérito que tramitava no STJ foi instaurado com base nos
depoimentos de Luiz (colaborador) colhidos em sede de colaboração premiada
celebrada com o Ministério Público estadual e homologada pelo juiz de 1ª
instância.

Para o STF, houve usurpação de atribuição da Procuradoria-Geral
da República e de competência do STJ, o que teria acarretado a nulidade das
provas que derivaram, ou seja, das provas que surgiram a partir das declarações
do colaborador.

Se o delator ou o delatado for autoridade com foro por prerrogativa de
função, a competência para homologar é do respectivo tribunal

Segundo o art. 4º, § 7º da Lei nº 12.850/2013, o acordo de
colaboração premiada deve ser remetido ao juiz para homologação, o qual deverá
verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade. Muito embora a lei
fale apenas em “juiz”, é possível que a homologação da colaboração premiada seja
da competência de tribunal, nos casos em que o delator ou os delatados
possuem foro por prerrogativa de função.

Com efeito, o colaborador admite seus próprios delitos e
delata outros crimes. Assim, quanto à prerrogativa de função, será competente o
juízo mais graduado, observadas as prerrogativas de função do delator e dos
delatados. Ex: se um Prefeito (julgado pelo TJ) faz um acordo de colaboração
premiada e delata um Deputado Federal que teria praticado crimes no exercício
de seu cargo e em função dele, a competência para homologar este acordo é do
STF (art. 102, I, “b”).

Interpretação do STJ não foi correta

No caso concreto, o investigado celebrou acordo de
colaboração com o Ministério Público estadual, o qual foi homologado pelo juiz.

O colaborador imputou delitos ao Governador.

Para corroborar suas declarações, o colaborador apresentou documentos
que supostamente comprovariam a propina ao Governador. A despeito de terem sido
imputados delitos ao Governador, a colaboração não foi realizada pela
Procuradoria-Geral da República, tampouco foi submetida à homologação pelo STJ.

Mesmo diante desse cenário, o STJ decidiu “validar” essa
situação.

Para o STJ, os indícios contra a autoridade (Governador) só
surgiram com o depoimento do colaborador. Logo, o acordo poderia ter sido
homologado pelo juízo de 1ª instância e, a partir daí, a investigação deveria
tramitar no STJ. Assim, teria sido correto homologar o acordo e, em seguida,
remeter os autos ao STJ.

O STF, contudo, não concordou com essa interpretação do STJ.
Para o Supremo, se a delação do colaborador mencionar autoridade com
prerrogativa de foro, este acordo deve ser celebrado pelo Ministério Público que
atua no Tribunal, com homologação pelo Tribunal competente.

Repetindo:

Imagine que um indivíduo que não tem foro por prerrogativa
de função queira fazer um acordo de colaboração premiada. Ele diz o seguinte:
quero delatar o Governador, ou seja, desejo revelar crimes que o Governador
atual cometeu no exercício do cargo e que estejam com ele relacionados. Esse
acordo pode ser homologado pelo juízo de 1ª instância?

• O STJ decidiu que sim. O acordo pode ser celebrado pelo
Ministério Público de 1ª instância e homologado pelo juízo de 1ª instância. Após
a homologação, remete-se a investigação para o Tribunal competente (no caso, o
STJ, por força do art. 105, I, “a”).

Para o STF: NÃO. Se a delação do
colaborador mencionar autoridade com prerrogativa de foro (ex: Governador),
este acordo deve ser celebrado pelo Ministério Público respectivo (PGR), com
homologação pelo Tribunal competente (STJ).

Obs: como a decisão do STJ foi reformada pelo STF, não
precisa você “guardar” o que o STJ decidiu. Isso porque o STJ irá se curvar
diante do entendimento do STF. Basta entender e memorizar o que o STF concluiu
porque é o que prevaleceu.

Se
a delação do colaborador mencionar fatos criminosos que teriam sido praticados
por autoridade (ex: Governador) e que teriam que ser julgados por foro
privativo (ex: STJ), este acordo de colaboração deverá, obrigatoriamente, ser
celebrado pelo Ministério Público respectivo (PGR), com homologação pelo
Tribunal competente (STJ)
.

Assim,
se os fatos delatados tiverem que ser julgados originariamente por um Tribunal (foro
por prerrogativa de função), o próprio acordo de colaboração premiada deverá
ser homologado por este respectivo Tribunal, mesmo que o delator não tenha foro
privilegiado.

A
delação de autoridade com prerrogativa de foro atrai a competência do Tribunal
competente para a respectiva homologação e, em consequência, do órgão do
Ministério Público que atua perante a Corte.

Se
o delator ou se o delatado tiver foro por prerrogativa de função, a homologação
da colaboração premiada será de competência do respectivo Tribunal.

STF. 2ª Turma. HC 151605/PR, Rel. Min.
Gilmar Mendes, julgado em 20/3/2018 (Info 895).

Como vimos acima, após a instauração do inquérito no STJ, a defesa do
Governador impugnou a utilização das declarações do colaborador. Pergunta:
delatado possui legitimidade para impugnar o acordo de colaboração premiada?

Em regra, não. O STF entende que o delatado não tem
legitimidade para impugnar o acordo de colaboração premiada, por se tratar de
negócio jurídico personalíssimo.

O contraditório e a ampla defesa serão exercidos pelo delatado
posteriormente, apenas no processo penal que for instaurado com as provas
produzidas pelo colaborador. Nesse sentido:

(…) Por se tratar de negócio
jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser
impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e
nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente
nominados no respectivo instrumento no “relato da colaboração e seus possíveis
resultados” (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13).

7. De todo modo, nos procedimentos em
que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados – no
exercício do contraditório – poderão confrontar, em juízo, as declarações do
colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo,
as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu
desfavor. (…)

STF. Plenário. HC 127483, Rel. Min. Dias
Toffoli, julgado em 27/08/2015.

Exceção: é possível que o delatado faça impugnação
quanto à competência para homologação do acordo. Isso porque, neste caso, a
impugnação está relacionada com regras constitucionais de prerrogativa de foro.
Assim, ainda que seja negada ao delatado a possibilidade de impugnar o acordo,
esse entendimento não se aplica em caso de homologação sem respeito à
prerrogativa de foro.

Em caso de homologação de acordo sem observância das regras
de competência, o que se tem é uma hipótese de ineficácia do acordo em relação à
autoridade delatada (em nosso exemplo, o Governador). Desse modo, os atos de
colaboração premiada, decorrentes do acordo, não são eficazes para ele porque
foi homologado com usurpação de competência do STJ.

Por essa razão, as provas devem ser excluídas do inquérito.
Tento em vista que a instauração se deu com base exclusivamente nos atos de
colaboração, o inquérito deve ser trancado.

Em
regra, o delatado não tem legitimidade para impugnar o acordo de colaboração
premiada. Assim, em regra, a pessoa que foi delatada não poderá impetrar um
habeas corpus alegando que esse acordo possui algum vício. Isso porque se trata
de negócio jurídico personalíssimo.

Esse entendimento, contudo, não se aplica em caso
de homologação sem respeito à prerrogativa de foro.

Desse
modo, é possível que o delatado questione o acordo se a impugnação estiver
relacionada com as regras constitucionais de prerrogativa de foro. Em outras
palavras, se o delatado for uma autoridade com foro por prerrogativa de função
e, apesar disso, o acordo tiver sido homologado em 1ª instância, será permitido
que ele impugne essa homologação alegando usurpação de competência.

STF. 2ª Turma. HC 151605/PR, Rel. Min.
Gilmar Mendes, julgado em 20/3/2018 (Info 895).

Artigo Original em Dizer o Direito

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