Imagine a seguinte situação adaptada:

Maria estava voltando para casa,
por volta das 18h, em um trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos), na cidade de São Paulo/SP.

Ela estava em pé dentro do vagão
e, de repente, “foi importunada por um homem que se postou atrás da mesma,
esfregando-se na região de suas nádegas”, sendo que, ao se queixar com o
agressor, verificou que ele “estava com o órgão genital ereto”.

Vale ressaltar que, na parada
seguinte, Maria informou o fato à equipe da CPTM, que localizou e conduziu o agressor
à delegacia.

A vítima ficou muito abalada
emocionalmente com o episódio e ingressou com ação de indenização por danos
morais contra a CPTM, empresa concessionária do transporte ferroviário,
alegando que não foi oferecida a devida segurança a ela enquanto passageira.

A questão chegou até o STJ. A
empresa concessionária tem o dever de indenizar neste caso?

SIM.

Contrato de transporte de pessoas

O transporte de pessoas consiste
em contrato pelo qual o transportador se obriga a transportar, com segurança e
presteza, pessoas e suas bagagens, de um ponto a outro, mediante o pagamento da
passagem.

Cláusula de incolumidade

Existe uma cláusula que está
implícita nos contratos de transporte. Trata-se da chamada “cláusula de
incolumidade”, segundo a qual se impõe ao transportador, mesmo que
implicitamente, o dever de zelar pela incolumidade do passageiro, levando-o, a
salvo e em segurança, até o local de destino.

Conforme explica Sérgio Cavalieri
Filho, “a característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula
de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportador não é apenas
de meio, e não só de resultado, mas também de segurança. Não se obriga ele a
tomar as providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte;
obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito” (Programa de Responsabilidade
Civil. São Paulo: Atlas, 12ª ed., 2015, p. 398).

Responsabilidade objetiva do
transportador

O art. 734 do
Código Civil estabelece, inclusive, a responsabilidade objetiva do
transportador pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens,
salvo motivo de força maior:

Art. 734. O transportador responde
pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de
força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

Parágrafo único. É lícito ao
transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite
da indenização.

Art. 735. A responsabilidade
contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por
culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.

Responsabilidade objetiva
enquanto fornecedor de serviços

A empresa
concessionária é fornecedora de serviços e possui responsabilidade civil
decorrente do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 14. O fornecedor de serviços
responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1º O serviço é defeituoso quando não
fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em
consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – o modo de seu fornecimento;

II – o resultado e os riscos que
razoavelmente dele se esperam;

III – a época em que foi fornecido.

§ 2º O serviço não é considerado
defeituoso pela adoção de novas técnicas.

§ 3º O fornecedor de serviços só não
será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o
defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor
ou de terceiro.

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou
suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Concessionária de serviço público

Além do Código Civil e do CDC,
vale ressaltar que as concessionárias de serviço público também possuem
responsabilidade objetiva por força do art. 37, § 6º da CF/88.

Segundo entende o STF, as pessoas
jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público, respondem
objetivamente pelos prejuízos que causarem a terceiros, sejam eles usuários ou
não usuários do serviço.

Ex: um ônibus de uma empresa de
transporte coletivo se envolve em um acidente de trânsito, essa empresa
concessionária de serviço público terá responsabilidade objetiva tanto em
relação aos passageiros (usuários do serviço) como também em relação aos
eventuais pedestres que o ônibus atingiu (não usuários do serviço).

Essa foi a tese fixada pelo STF:

A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito
privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros
usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da
Constituição Federal.

STF. Plenário. RE 591874, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado
em 26/08/2009 (repercussão geral).

Fato de terceiro como excludente
do nexo de causalidade

Apesar de a responsabilidade ser
objetiva, é possível que o fato de terceiro seja uma causa excludente de
responsabilidade quando houver rompimento do nexo causal.

Vale ressaltar, no entanto, que o
fato de terceiro somente será caracterizado como excludente de responsabilidade
quando ele for inteiramente independente ao transporte em si, afastando-se, com
isso, a responsabilidade da empresa transportadora por danos causados aos
passageiros.

Assim, no que
concerne à culpa de terceiro, a doutrina e a jurisprudência são unânimes no
sentido de somente reconhecer o rompimento do nexo causal quando a conduta
praticada pelo terceiro não apresentar qualquer relação com a organização do
negócio e os riscos da atividade desenvolvida pelo transportador. Diz-se, nessa
hipótese, que o fato de terceiro se equipara ao fortuito externo, apto a elidir
a responsabilidade do transportador. Veja:

Fortuito INTERNO

Fortuito EXTERNO

Está relacionado com a organização da
empresa.

É um fato ligado aos riscos da atividade
desenvolvida pelo fornecedor.

Não está relacionado com a organização da empresa.

É um fato que não guarda nenhuma relação de
causalidade com a atividade desenvolvida pelo fornecedor.

É uma situação absolutamente estranha ao
produto ou ao serviço fornecido.

Ex1: o estouro de um pneu do ônibus da
empresa de transporte coletivo;

Ex2: cracker invade o sistema do banco e
consegue transferir dinheiro da conta de um cliente.

Ex3: durante o transporte da matriz para
uma das agências, ocorre um roubo e são subtraídos diversos talões de cheque
(trata-se de um fato que se liga à organização da empresa e aos riscos da
própria atividade desenvolvida).

Ex1: assalto à mão armada no interior de
ônibus coletivo (não é parte da organização da empresa de ônibus garantir a
segurança dos passageiros contra assaltos);

Ex2: um terremoto faz com que o telhado do
banco caia, causando danos aos clientes que lá estavam.

O fortuito interno NÃO exclui a obrigação
do fornecedor de indenizar o consumidor.

O fortuito externo é uma causa excludente
de responsabilidade.

Desse modo, o fato de terceiro pode ser:

• fortuito externo: apto à exclusão do dever de indenizar do transportador;

• fortuito interno: quando se insere dentre os riscos inerentes à
prestação do serviço, atraindo a responsabilidade da empresa de transportes.

A análise é casuística, sendo necessário avaliar, na hipótese trazida a julgamento,
se o dano sofrido pelo passageiro extrapola ou não os limites da cláusula de
incolumidade do contrato.

Exemplos nos quais o STJ
reconheceu que o fato de terceiro era causa excludente da responsabilidade
(fortuito EXTERNO):

• dano sofrido pelo passageiro em
virtude de uma pedra que foi arremessada contra o ônibus ou trem (AgInt nos
EREsp 1.325.225/SP, DJe de 19/09/2016);

• assalto a mão armada no
interior do veículo de transporte coletivo (AgRg no REsp 620.259/MG, DJe de
26/10/2009);

• assalto a mão armada nas
dependências da estação metroviária (REsp 974.138/SP, DJe de 09/12/2016);

• morte de usuário do transporte
coletivo, vítima de “bala perdida” (AgRg no REsp 1.049.090/SP, DJe de
19/08/2014);

• danos decorrentes de explosão
de bomba em composição de trem (AgRg nos EDcl nos EREsp 1.200.369/SP, DJe de
16/12/2013).

Assédio sexual em transportes
públicos: fortuito INTERNO (necessidade de proteção da incolumidade
físico-psíquica das mulheres)

Ser exposta a assédio sexual
viola a cláusula de incolumidade física e psíquica daquele que é passageiro de
um serviço de transporte de pessoas.

Este evento configura fortuito
interno porque a ocorrência desse assédio sexual tem relação com a prestação do
serviço de transporte de passageiros.

Os casos de assédio sexual têm
sido comuns no transporte ferroviário de São Paulo, em especial, nesta linha.

Embora a CPTM tenha localizado e
conduzido o agressor à delegacia, nada mais fez para evitar que esses fatos
ocorram.

Há uma série de soluções que
podem talvez não evitar, mas ao menos reduzir a ocorrência deste evento ultrajante,
tais como a disponibilização de mais vagões, uma maior fiscalização por parte
da empresa etc.

Por envolver, necessariamente,
uma grande aglomeração de pessoas em um mesmo espaço físico, aliados à baixa
qualidade do serviço prestado, incluído a pouca quantidade de vagões ou ônibus
postos à disposição do público, a prestação do serviço de transporte de
passageiros vem propiciando a ocorrência de eventos de assédio sexual. Em
outros termos, mais que um simples cenário ou ocasião, o transporte público tem
concorrido para a causa dos eventos de assédio sexual.

Nesse sentido, percebe-se que
esse tipo de situação está diretamente ligada à prestação do serviço de
transporte público, tornando-se assim mais um risco da atividade, a qual todos
os passageiros, em especial as mulheres, tornam-se vítimas.

Em suma:

A
concessionária de transporte ferroviário pode responder por dano moral sofrido
por passageira, vítima de assédio sexual, praticado por outro usuário no
interior do trem.

STJ. 1ª Turma. REsp 1.662.551-SP, Rel. Min.
Nancy Andrighi, julgado em 15/05/2018 (Info 628).

Valor da indenização

No caso concreto, o STJ condenou
a CPTM a pagar R$ 20 mil a título de indenização por danos morais.

Artigo Original em Dizer o Direito

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